Santificação

A santificação, obra do Espírito Santo, é a transformação progressiva do crente à imagem de Cristo, separando-o do pecado para Deus.

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A santificação é o processo, operado pelo Espírito Santo, pelo qual a vida do crente é progressivamente conformada à imagem de Cristo, sendo separado do pecado e consagrado a Deus.

Este conceito é uma das doutrinas centrais da vida cristã, fluindo diretamente da justificação pela fé. Enquanto a justificação altera o status legal do pecador perante Deus, a santificação trata da transformação moral e espiritual do seu caráter.

É a manifestação prática da nova vida recebida em Cristo, um chamado à santidade que define o propósito da jornada do cristão neste mundo.

Neste artigo apresentamos a natureza na santificação, assim como suas diferentes interpretações, dentro do cristianismo e em outras religiões.


A natureza da Santificação

A santificação é um processo contínuo e interno que dura toda a vida do crente. Ela não deve ser confundida com a ideia de perfeição sem pecado nesta vida, mas sim com uma reorientação fundamental do coração e da vontade.

Biblicamente, a santificação envolve duas dinâmicas simultâneas: a mortificação e a vivificação. Cada uma delas possui sua importância para vida do cristão e não podem ser desconectadas.

Mortificação

A mortificação se refere ao ato de “fazer morrer” as obras da carne e os desejos pecaminosos. É uma guerra espiritual constante contra o pecado que ainda habita no crente, uma recusa deliberada em se submeter aos seus antigos padrões.

Pois se vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; mas, se pelo Espírito fizerem morrer os atos do corpo, viverão,

Romanos 8:13 (NVI)
Ilustração de duas pessoas orando (Santificação)
Ilustração de duas pessoas orando (Santificação)

Vivificação

Por outro lado, a vivificação é o processo de viver em “novidade de vida” (Rm 6:4), cultivando o fruto do Espírito e se revestindo das virtudes de Cristo. O apóstolo Paulo resume essa dinâmica ao instruir os crentes a se considerarem “mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6:11) [1].

Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade,
mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei.

Gálatas 5:22,23 (NVI)

Diferença de santificação da justificação

É importante distinguir a santificação da justificação. A justificação é um ato instantâneo, legal e forense de Deus, no qual Ele declara um pecador justo com base na obra de Cristo. É um evento único que acontece no momento da conversão e é perfeito e completo.

A santificação, por outro lado, é um processo prático, interno e gradual de transformação. A justificação nos livra da culpa do pecado, enquanto a santificação progressivamente nos livra do poder do pecado [2].


O propósito da santificação

A jornada da santificação, embora expressa de maneiras diversas nas tradições cristãs, não é um fim em si mesma. Ela não é uma busca ascética por autoaperfeiçoamento ou uma tentativa de acumular méritos diante de Deus.

Pelo contrário, a santificação possui propósitos profundos e definidos, enraizados no caráter de Deus e em Seu plano redentor para a humanidade. Compreender esses propósitos ilumina a razão pela qual a busca pela santidade é uma parte não negociável da vida cristã.

Para a glória de Deus

O propósito fundamental de toda a criação e redenção é a glória de Deus. A santificação do crente é uma das mais belas exibições dessa glória.

Quando um pecador é transformado progressivamente à imagem de Cristo, o poder, a misericórdia e a sabedoria de Deus são magnificados.

O apóstolo Pedro nos exorta: “assim como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver” (1 Pe 1:15).

Nossa santidade não origina de nós mesmos, mas é um reflexo do caráter do próprio Deus.

Cada vitória sobre o pecado, cada ato de amor e obediência, cada fruto do Espírito manifesto em nossas vidas, aponta para a fonte de toda santidade e glorifica o nome do Pai.

Ilustração representando a criação do mundo segundo o Gênesis
Ilustração representando a criação do mundo segundo o Gênesis

Para a nossa certeza e alegria

A santificação também serve para fortalecer a nossa certeza da salvação e aprofundar nossa alegria em Deus. Embora a salvação seja recebida unicamente pela fé, uma vida que cresce em santidade é a evidência palpável de uma fé genuína.

O apóstolo João escreveu sua primeira epístola para que os crentes soubessem que tinham a vida eterna, e os sinais que ele aponta são marcas de uma vida santificada: obediência aos mandamentos, amor aos irmãos e abandono da prática do pecado.

Quando vemos o Espírito Santo operando em nós, mudando nossos desejos e nos capacitando para a justiça, nossa confiança em nossa posição como filhos de Deus é solidificada. Essa certeza produz uma alegria profunda e duradoura que as circunstâncias externas não podem abalar.

Para o testemunho ao mundo

Finalmente, a santificação é a ferramenta missionária mais poderosa da Igreja. Jesus orou ao Pai não para que fôssemos tirados do mundo, mas para que fôssemos guardados do mal enquanto estivéssemos nele.

Não rogo que os tires do mundo, mas que os protejas do Maligno.

João 17:15 (NVI)

Uma vida transformada é um testemunho irrefutável para um mundo cético.

Em uma cultura que celebra a autoindulgência, a pureza é um farol. Em um mundo marcado pela divisão e pelo ódio, o amor sacrificial entre os irmãos é um sinal poderoso.

Foi o próprio Cristo quem disse: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13:35).

A santidade do povo de Deus torna o Evangelho visível e atraente, servindo como uma apologética viva que aponta para a realidade e o poder transformador do Cristo ressurreto.

Ilustração de missão cristã. Homem ensinando a Bíblia para outro
Ilustração de missão cristã. Homem ensinando a Bíblia para outro

As três fases da Santificação

Para uma compreensão mais clara, a teologia sistemática frequentemente separa a santificação em três etapas distintas, que correspondem ao passado, presente e futuro da vida do crente.

Santificação Posicional (Passado)

A santificação posicional é um ato definitivo que ocorre no momento da salvação. No instante em que uma pessoa se une a Cristo pela fé, ela é instantaneamente “separada” ou “santificada”.

Seu status muda: de uma pessoa comum e profana, ela se torna um “santo” (hagios em grego), alguém que pertence a Deus de maneira exclusiva.

Esta santificação não se baseia em qualquer mérito ou santidade pessoal, mas unicamente na obra consumada de Cristo.

Ilustração de Jesus conversando com a mulher samaritana
Ilustração de Jesus conversando com a mulher samaritana

Santos ou santificados

O Novo Testamento frequentemente se refere aos crentes como “santos” ou “santificados”, mesmo quando aborda suas falhas e pecados.

Paulo escreve à igreja de Corinto, uma comunidade com sérios problemas morais, e se dirige a eles como “aqueles santificados em Cristo Jesus” (1Co 1:2).

Em 1 Coríntios 6:11 Paulo afirma:

Assim foram alguns de vocês. Mas vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus.

1 Coríntios 6:11 (NVI)

Esta santidade posicional é a base segura sobre a qual todo o crescimento espiritual se desenvolve [3].

Santificação Progressiva (Presente)

Esta é a fase mais conhecida da santificação e se refere à experiência contínua do cristão. É um processo que dura a vida inteira, no qual o crente, pela graça de Deus, cresce em santidade e se torna cada vez mais semelhante a Cristo.

Esta não é uma jornada passiva; é descrita como uma cooperação entre a obra de Deus e o esforço do crente.

A Bíblia deixa claro que é Deus quem opera em nós. Filipenses 2:13 afirma que “é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele”.

No entanto, o versículo anterior exorta: “desenvolvam a sua salvação com temor e tremor” (Fp 2:12). Deus não nos santifica contra a nossa vontade, mas capacita a nossa vontade para que possamos buscar a santidade [4].

Israelitas clamando a Deus. Exemplo de busca por santificação
Ilustração dos israelitas clamando a Deus

Meios de graça

Os meios que Deus utiliza neste processo são chamados de “meios de graça”. O principal deles é a Palavra de Deus, como Jesus orou em João 17:17: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade”.

Outros meios incluem a oração, a comunhão com outros crentes, a participação nos sacramentos (Batismo e Ceia do Senhor) e até mesmo as provações e a disciplina divina, que Deus usa para nos tornar “participantes da sua santidade” (Hb 12:10).

Santificação Perfeita (Futuro)

A santificação perfeita, também conhecida como glorificação, é a fase final e culminante do processo. Ela ocorrerá no futuro, no momento da volta de Cristo ou da morte do crente. Ela está ligado a nossa estadia no Céu, no Paraíso.

Será um ato instantâneo no qual o crente será completamente liberto não apenas do poder do pecado, mas também de sua própria presença. A luta contra a carne cessará, e o cristão será tornado perfeitamente santo em corpo e alma.

Esta é a esperança final do crente, a certeza de que a obra que Deus começou será completada. O apóstolo João descreve esta esperança em 1 João 3:2:

Dante e Beatriz contemplando o mais alto dos céus. ilustração de Gustave Doré para a Divina Comédia
Dante e Beatriz contemplando o mais alto dos céus. ilustração de Gustave Doré para a Divina Comédia

Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é.

1 João 3:2 (NVI)

“Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é”.

Nesta fase final, a santificação do crente alcançará sua perfeição, e ele habitará com Deus em santidade absoluta para sempre.


Perspectivas cristãs sobre santificação

Ao longo da história da Igreja, diferentes tradições desenvolveram compreensões ricas e matizadas sobre a doutrina da santificação. Explorar essas perspectivas nos oferece uma visão mais ampla da obra multiforme do Espírito Santo na vida do povo de Deus.

Catolicismo Romano

Na teologia católica romana, a santificação está intrinsecamente ligada à “graça santificante”.

Não se trata de um mero favor divino, mas de uma qualidade real infundida na alma, que confere uma nova vida, uma verdadeira participação na vida de Deus.

É por meio deste dom que a reconciliação operada por Cristo se torna efetiva no indivíduo, elevando-o à condição de filho de Deus. Esta graça é a fonte de todo mérito sobrenatural e estabelece o direito à glória eterna [7].

A busca pela santidade, portanto, é a cooperação humana com essa graça divina. Paulo da Cruz resumiu os meios práticos para essa cooperação [8]:

  • A oração;
  • A boa leitura;
  • A recepção frequente dos sacramentos, com as devidas disposições;
  • A fuga da ociosidade.
Uma representação do Papa Gregório IX aplicando uma excomunhão
Uma representação do Papa Gregório IX aplicando uma excomunhão

As três compreensões da santidade católica

A “santidade” é compreendida de maneiras distintas: para Deus, é Sua perfeição moral absoluta e única. Para o indivíduo, é a união íntima com Deus que resulta em perfeição moral, um dom que vem do Alto.

Para a Igreja como um corpo, a santidade se manifesta em sua capacidade de gerar e nutrir a santidade em seus membros, uma capacidade que transcende o poder meramente humano ou natural [9].

Ortodoxia Oriental

A tradição ortodoxa oriental aborda a santificação através da profunda doutrina da theosis, ou deificação. Este conceito, apoiado em passagens como 2 Pedro 1:4, ensina que os seres humanos são chamados a assumir as propriedades divinas, participando da própria vida de Deus.

A famosa declaração de Atanásio de Alexandria no século IV encapsula essa verdade: Deus se tornou homem para que o homem pudesse se tornar Deus [10].

É importante entender que a theosis não significa que o homem se torna Deus em Sua essência. A criatura não se funde com o Criador. Antes, em Cristo e pelo poder do Espírito Santo, o crente pode participar da natureza divina.

A salvação, nesta visão, é o processo de restaurar a semelhança de Deus no homem, uma imagem que foi manchada pela queda [11].

Um dos temas centrais desta jornada é a libertação da mortalidade e da corrupção, que são consequências dos desejos desordenados do mundo [12].

A santificação é, nesta visão, uma transformação real e progressiva do ser humano na imagem e semelhança de Deus.

Detalhe de um ícone ortodoxo polonês do século XVII representando Enoque
Detalhe de um ícone ortodoxo polonês do século XVII representando Enoch

Luteranismo

No pensamento luterano, a santificação não pode ser compreendida à parte da justificação pela fé. As duas estão inseparavelmente ligadas, mas são distintas.

Justificação e o Início da Santificação

O processo de santificação tem seu início no exato momento em que um indivíduo é justificado. É a obra do Espírito Santo que se segue à justificação e consiste em renovar o crente, capacitando-o para uma vida de boas obras [13].

A Fórmula da Concórdia articula a ordem da salvação com clareza: o Espírito Santo, por meio do Evangelho, acende a fé no coração.

A fé se apropria da graça de Deus em Cristo, pela qual a pessoa é justificada. Só então, após a justificação, o Espírito Santo a renova e santifica, e desta santificação brotam os frutos das boas obras [13].

Assim, a santificação não é um pré-requisito para a salvação, mas sua consequência inevitável e a evidência de uma fé viva.

As Confissões Luteranas afirmam que a vontade humana antes da regeneração é passiva na conversão; ela é o sujeito a ser convertido, e é o Espírito Santo quem realiza a obra, até que a pessoa seja regenerada.

A partir de então, o crente coopera com o Espírito nas boas obras que se seguem [19, 20].

Martinho Lutero em 1529 por Lucas Cranach, o Velho
Martinho Lutero em 1529 por Lucas Cranach, o Velho

A Natureza e o Propósito das Boas Obras

As boas obras ocupam um lugar vital na vida cristã, não como meio de obter o favor de Deus, mas como os frutos necessários de uma fé que justifica [13]. Elas procedem de um coração renovado e grato. Martinho Lutero via os Dez Mandamentos como um guia divino para essa nova vida, a verdadeira fonte e canal de onde fluem as obras que agradam a Deus [21].

Embora essas obras não mereçam a salvação, a teologia luterana ensina que Deus as recompensa [14].

Contudo, a tradição luterana adverte solenemente que aqueles que caem em pecado mortal e persistem nele sem arrependimento perdem a fé e a habitação do Espírito, tornando-se sujeitos à ira divina, a menos que se convertam e sejam reconciliados com Deus [15, 16, 13].

A santificação, embora imperfeita e incompleta nesta vida [18], é um exercício sério e contínuo na vida de todo crente genuíno, especialmente enfatizado pelo luteranismo pietista [22].

Anabatismo

Para a tradição anabatista, a santificação é a essência do discipulado cristão. Iniciada pelo novo nascimento operado pelo Espírito de Deus, ela é vivida na prática diária de seguir os passos de Cristo.

Este caminho não é percorrido de forma isolada; o papel do Espírito, da Palavra, da comunidade de crentes, do sofrimento e da abnegação são considerados indispensáveis.

A santificação é um processo que dura toda a vida, começando na conversão e continuando até o fim.

A queima no século XVI da holandesa anabatista Anneken Hendriks, que foi acusada de heresia em Amsterdão.
A queima no século XVI da holandesa anabatista Anneken Hendriks, que foi acusada de heresia em Amsterdão.

A rejeição do perfeccionismo

Os anabatistas rejeitam qualquer noção de perfeccionismo que sugira a erradicação total da natureza pecaminosa nesta vida. Em vez disso, enfatizam a necessidade de tomar a cruz diariamente e negar a si mesmo para ser um discípulo autêntico.

A seriedade deste processo é tal que, se um crente abandona o caminho da santificação, sua própria salvação é vista como comprometida.

A vida santificada se expressa na mortificação das obras da carne, na purificação dos motivos e pensamentos, e em glorificar o Pai por meio da adoração, obediência e uma fé que opera pelo amor.

Anglicanismo

A Comunhão Anglicana, conhecida por sua abordagem de via media, não possui um ensino único e explícito sobre a santificação em seus formulários oficiais [23].

No entanto, a compreensão geral é que a santificação é “o processo da obra de Deus dentro de nós por meio do qual crescemos na plenitude da vida redimida” [24]. Desde seus primórdios, teólogos anglicanos têm refletido sobre essa doutrina.

Foto do interior da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil no Rio de Janeiro, Barra da Tijuca
Foto do interior da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil no Rio de Janeiro, Barra da Tijuca

O teólogo do século XVI, Richard Hooker, distinguiu a “justiça da justificação”, que é imputada por Deus, da “justiça da santificação”, que consiste nas obras que um crente realiza como resultado inevitável de ter sido justificado [25].

No século seguinte, Jeremy Taylor argumentou que a justificação e a santificação são inseparáveis, descrevendo-as como “dois passos em um longo processo” [26].

Uma obra da Igreja da Inglaterra do século XIX sintetizou bem essa visão: justificação e santificação são inseparáveis, mas não são a mesma coisa. A justificação se encontra unicamente na obra de Cristo por nós. A santificação é a obra progressiva do Espírito Santo em nós [27].

Perspectivas Batista e Reformada

As tradições Batista e Reformada compartilham uma compreensão robusta da santificação como um processo progressivo.

Os batistas creem que a santificação é uma obra da graça de Deus, que envolve também as decisões e a cooperação do crente após o novo nascimento [28, 29].

A teologia reformada, a partir de João Calvino, vê a justificação e a santificação como graças gêmeas que fluem da união com Jesus Cristo; é impossível ter uma sem a outra.

João Calvino e a santificação

Calvino não trata a santificação como uma doutrina isolada, mas como parte integrante da obra do Espírito Santo [30].

Ele adota uma abordagem não perfeccionista, vendo a santificação como um progresso contínuo que só se completará na glória.

Calvino adverte que essa imperfeição não é desculpa para a negligência, pois todos os piedosos devem aspirar à santidade [31].

Um ponto central é que as boas obras do crente, embora sempre manchadas pela imperfeição, são aceitáveis a Deus. A razão para isso é que “tudo o que nelas há de imperfeito é coberto pela perfeição de Cristo”, de modo que nunca são levadas a juízo diante do tribunal divino [32].

Retrato de João Calvino de 1550
Retrato de João Calvino de 1550

Metodismo

A doutrina da santificação é central para a teologia metodista, considerada por seu fundador, John Wesley, como “o grande depósito” confiado ao Metodismo [39]. Essa compreensão é tipicamente estruturada em estágios distintos.

As Fases da Santificação Wesleyana

A jornada começa com a santificação inicial, que ocorre no momento da justificação e regeneração, quando o filho de Deus é separado do pecado e para Deus [34]. A partir daí, o crente entra na santificação progressiva, um crescimento diário na graça e em obediência, à medida que anda com Deus.

Este crescimento é nutrido pelos “meios de graça”, que incluem tanto as obras de piedade (como a oração e a recepção frequente da Santa Ceia [37]) quanto as obras de misericórdia (como visitar os enfermos e os presos [38]), que refletem o poder santificador de Deus [36]. Este processo contínuo de crescimento prepara o crente para a experiência culminante da santificação [48].

A Doutrina da “Inteira Santificação”

O objetivo da vida cristã, segundo a visão wesleyana, é a inteira santificação, também chamada de perfeição cristã. Wesley a descreveu como um coração “habitualmente cheio do amor a Deus e ao próximo” e como “ter a mente de Cristo e andar como ele andou” [43].

Não se trata de uma perfeição absoluta, isenta de erros ou tentações, mas de uma perfeição no amor, uma purificação do coração do pecado inato pelo batismo com o Espírito Santo [34, 44, 47].

Esta é vista como uma segunda obra da graça, uma crise instantânea recebida pela fé, que aperfeiçoa o crente no amor e o capacita para um serviço eficaz [34, 44].

É uma renovação da natureza decaída pela qual o crente é lavado da poluição do pecado e capacitado a andar nos mandamentos de Deus sem culpa [46].

Contudo, esse estado pode ser perdido por meio do pecado voluntário, exigindo profundo arrependimento para a restauração [50]. A santidade exterior é vista como a expressão necessária dessa transformação interior [54, 55].

John Wesley pregando
John Wesley pregando

Pentecostalismo

Dentro do movimento pentecostal, existem duas principais correntes de pensamento sobre a santificação [56]. A primeira, herdada do Movimento de Santidade Wesleyano, é a posição da santificação inteira. Denominações como a Igreja de Deus em Cristo e a Igreja Pentecostal Internacional da Santidade ensinam que a santificação é uma segunda obra da graça, uma experiência distinta e subsequente à conversão que purifica o coração do crente [57].

O que distingue essa visão da metodista é a adição de uma possível terceira obra da graça: o batismo no Espírito Santo, evidenciado pelo falar em outras línguas (glossolalia) [58].

A segunda posição, defendida por denominações como as Assembleias de Deus, é a da santificação progressiva. Esta visão entende a santificação como a obra contínua da graça de Deus na vida do crente, envolvendo também suas decisões e cooperação, a partir do novo nascimento [30, 59]. Nesta perspectiva, não há uma “segunda crise” necessária; em vez disso, a santificação é um processo que se desenvolve ao longo de toda a jornada cristã.

Quakers (Sociedade dos Amigos)

George Fox, o fundador do quakerismo, ensinou uma forma radical de perfeição cristã, na qual o crente poderia ser verdadeiramente liberto do poder e da prática do pecado nesta vida [60, 61].

A lógica de Fox era direta: o diabo é quem trouxe o homem à imperfeição; Cristo veio para destruir as obras do diabo. Portanto, a obra de Cristo torna o homem perfeito novamente [60].

Os primeiros quakers acreditavam que, como resultado do novo nascimento pelo poder do Espírito Santo, uma vida livre do pecado era uma possibilidade real para aqueles que permanecessem fiéis à “Luz Interior”, a presença de Cristo no coração do crente, e se concentrassem na cruz como o centro de sua fé [62].

Esta visão coloca uma forte ênfase na responsabilidade pessoal pela fé e na possibilidade de uma genuína emancipação do pecado no aqui e agora, não apenas como uma esperança futura [62].

George Fox, o principal líder inicial dos Quakers
George Fox, o principal líder inicial dos Quakers

Santificação em outras religiões

Embora o termo Santificação, com sua estrutura teológica específica, seja distintamente cristão, a busca pela purificação espiritual, crescimento moral e uma conexão com o sagrado é uma característica universal da experiência religiosa.

Diversas religiões mundiais possuem conceitos análogos que, embora operem sob diferentes pressupostos e com objetivos distintos, refletem essa busca humana por um estado de maior santidade ou iluminação. Analisar essas perspectivas oferece um contraste que aprofunda a compreensão da doutrina bíblica da santificação.

A Santificação (Qedushah) no Judaísmo

No Judaísmo, o conceito mais próximo da santificação é a Qedushah (קְדֻשָּׁה), que significa “santidade” ou “separação”. A base é a mesma do Antigo Testamento: Deus é santo e conclama seu povo a ser santo (Levítico 19:2).

Diga o seguinte a toda comunidade de Israel: Sejam santos porque eu, o Senhor, o Deus de vocês, sou santo.

Levítico 19:2 (NVI)

A Qedushah não é primariamente um estado interno alcançado, mas uma condição vivida através da obediência aos mitzvot (mandamentos) da Torá.

A santificação da vida ocorre através de atos concretos que separam o povo judeu e dedicam cada aspecto da existência a Deus, como a observância do Sábado (Shabat), as leis alimentares (kashrut) e as orações diárias [6].

O processo envolve também a Taharah, ou pureza ritual, que capacita o indivíduo a se aproximar do sagrado.

Diferente da santificação cristã, que é operada pelo Espírito Santo com base na obra de Cristo, a Qedushah judaica é alcançada através da adesão fiel à aliança, sem a necessidade de um mediador divino ou a doutrina do pecado original como compreendida no cristianismo.

Símbolos do judaísmo (em sentido horário) castiçais do Shabat, cálice de lavagem das mãos, Chumash e Tanakh, ponteiro da Torá, shofar e caixa de etrog.
Símbolos do judaísmo (em sentido horário) castiçais do Shabat, cálice de lavagem das mãos, Chumash e Tanakh, ponteiro da Torá, shofar e caixa de etrog.

A Santificação (Tazkiyah) no Islamismo

No Islamismo, o conceito correspondente é a Tazkiyah (تزكية), que se traduz como “purificação da alma”. O objetivo da Tazkiyah é limpar o coração (qalb) de doenças espirituais como a arrogância (kibr), a inveja (hasad) e o amor ao mundo (dunya), e adorná-lo com virtudes como a sinceridade para com Deus (ikhlas), a gratidão (shukr) e a paciência (sabr).

Este é um processo de autodisciplina e esforço pessoal (jihad al-nafs, a luta contra o eu) para submeter a própria vontade inteiramente a Allah [7].

Os meios para alcançar a Tazkiyah são a prática rigorosa dos Cinco Pilares do Islã, a recitação do Alcorão, a lembrança constante de Allah (dhikr) e a busca por conhecimento.

Embora se acredite que a ajuda de Allah é necessária, a ênfase recai sobre o esforço do muçulmano em se purificar através de suas obras e devoção.

O conceito de um Espírito Santo que habita no crente para capacitá-lo ativamente na santificação não está presente na teologia islâmica.

Reunião de peregrinos em Meca. Islamismo, Islã
Reunião de peregrinos em Meca

A Santificação (Iluminação) no Budismo

O Budismo oferece uma perspectiva radicalmente diferente. O conceito análogo seria o caminho para a iluminação (Bodhi) ou a libertação final, o Nirvana. Este é um processo de purificação, mas seu objetivo não é a consagração a um Deus pessoal, e sim a extinção do sofrimento (dukkha).

A “impureza” a ser removida não é o pecado contra um Criador, mas a ignorância (avidya), o desejo (tanha) o apego, que são as raízes de todo o sofrimento [8].

O método para essa purificação é o Nobre Caminho Óctuplo, um guia prático que engloba a conduta ética, a disciplina mental (através da meditação) e a sabedoria. A “santidade” no Budismo é um estado de desapego, paz interior e compreensão da “verdadeira” natureza da realidade.

O processo é inteiramente um caminho de autolibertação, dependendo exclusivamente do esforço e da disciplina do praticante, sem a intervenção de uma divindade externa que santifica.

Estátua de Buda em Bodh Gaya, um dos lugares mais sagrados do budismo
Estátua de Buda em Bodh Gaya, um dos lugares mais sagrados do budismo

Etimologia e o significado de santificação

A profundidade do conceito de santificação é enriquecida pela compreensão dos termos originais nas Escrituras.

No Novo Testamento (Grego)

O principal termo grego para santificação é hagiasmos (ἁγιασμός). Este substantivo deriva do adjetivo hagios (ἅγιος), que significa “santo”. Uma pessoa ou objeto hagios é algo que foi separado do uso comum e consagrado exclusivamente para Deus. Portanto, um “santo” não é alguém moralmente perfeito, mas alguém que foi reivindicado por Deus para Seus propósitos.

Hagiasmos, então, é o processo pelo qual alguém ou algo é tornado hagios. Ele carrega tanto a ideia de um ato definitivo de consagração quanto a de um processo contínuo de manutenção dessa santidade na prática [5].

No Antigo Testamento (Hebraico)

A raiz hebraica para santidade é qadash (קדשׁ). Este verbo e seus derivados são usados centenas de vezes no Antigo Testamento.

O significado de qadash é “separar” ou “consagrar”. Este termo era aplicado a uma vasta gama de coisas: ao povo de Israel como nação (Ex 19:6), aos sacerdotes e levitas, a lugares como o Tabernáculo e o Templo, a objetos como o altar e os utensílios, e a tempos como o sábado e as festas sagradas.

Em todos os casos, a ideia central era a separação do profano e a dedicação para o uso sagrado de Deus. Esta rica herança do Antigo Testamento fornece o pano de fundo para o entendimento neotestamentário da santificação como a separação de um povo para Deus [1].


Aprenda mais

[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia.

[Vídeo] A santificação | FD#35. Luciano Subirá.


Perguntas comuns

Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com as respostas, que as pessoas fazem sobre este termo teológico tão importante para o cristianismo.

O que é a santificação segundo a Bíblia?

A santificação, segundo a Bíblia, é o processo, operado pelo Espírito Santo, de ser separado do pecado e se tornar mais parecido com Jesus. É uma jornada contínua que começa na conversão e busca a consagração a Deus.

Quais são os três tipos de santificação?

A santificação se divide em três etapas: posicional (passado, um ato definitivo na salvação), progressiva (presente, um crescimento contínuo em semelhança a Cristo) e perfeita (futuro, a libertação completa do pecado na glorificação).

O que é o processo de santificação?

A santificação, no cristianismo, é um processo de crescimento em que o crente se torna mais parecido com Cristo. É uma jornada contínua, onde a pessoa coopera com o Espírito Santo para se afastar do pecado e viver de acordo com a vontade de Deus.

Como se santificar ao Senhor?

Para a santificação, o cristão precisa aceitar Jesus e permitir que o Espírito Santo o guie. Isso envolve um processo contínuo de se afastar do pecado, arrepender-se das falhas, buscar a santidade em ações diárias e obedecer à Palavra de Deus. É um esforço constante para viver como Jesus, submetendo-se a Ele e buscando ter seu caráter.

Qual é o propósito da santificação?

O propósito da santificação é a nossa transformação para sermos mais parecidos com Cristo. É um processo que nos separa do pecado e nos consagra a Deus, levando-nos a viver em obediência e santidade para a glória Dele.


Fontes

[1] Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional (NVI).

[2] Berkhof, L. (1996). Systematic Theology. Eerdmans Publishing.

[3] Grudem, W. (1994). Systematic Theology: An Introduction to Biblical Doctrine. Zondervan.

[4] Packer, J. I. (1973). Knowing God. InterVarsity Press.

[5] Kittel, G., & Friedrich, G. (Eds.). (1985). Theological Dictionary of the New Testament, Abridged in One Volume. Eerdmans.

[6] Donin, H. H. (1991). To Be a Jew: A Guide to Jewish Observance in Contemporary Life. Basic Books. [7] al-Ghazali, A. H. (2010). The Marvels of the Heart (Ihya’ ‘Ulum al-Din). (Tr traduzido por Walter James Skellie). Fons Vitae. [8] Rahula, W. (1974). What the Buddha Taught. Grove Press.

Vejas as demais fontes

[7] My Catholic Faith, S.J., Louis LaRavoire Morrow, 1963.

[8] São Paulo da Cruz, Cartas, III, p. 248.

[9] “Holiness.” The Catholic Encyclopedia, Vol. 7. New York: Robert Appleton Company, 1910.

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Diego Pereira do Nascimento
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