Valentinianismo

Valentinianismo foi um movimento gnóstico do século II, influente no cristianismo primitivo, com ideias teológicas distintas.

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8 minutos de leitura

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O valentinianismo foi um dos principais movimentos gnósticos do cristianismo primitivo, florescendo especialmente no século II d.C.

Derivado dos ensinamentos de Valentino de Roma, um teólogo e pensador influente, esse sistema não formava uma igreja institucionalizada, mas sim escolas de pensamento que promoviam uma interpretação esotérica e complexa da doutrina cristã.

Os valentinianos alegavam possuir uma tradição secreta que remontava ao apóstolo Paulo, transmitida por mestres como Teudas, discípulo de Paulo, conforme descrito em textos como o Evangelho da Verdade e outros documentos gnósticos [1].

Neste artigo apresentamos um pouco da história deste movimento, assim como suas implicações teológicas.


História do valentinianismo

O valentinianismo, um dos principais movimentos gnósticos do cristianismo primitivo, surgiu no século II d.C., em um período de grande efervescência religiosa e filosófica no mundo mediterrâneo.

Seu fundador, Valentino de Roma, foi um teólogo cristão de origem provavelmente egípcia, ativo em Roma por volta de 130-160 d.C.

Valentino afirmava ter recebido ensinamentos esotéricos que remontavam ao apóstolo Paulo, transmitidos por um discípulo chamado Teudas, o que conferia ao movimento uma aura de legitimidade apostólica. [1]

Embora não tenha constituído uma igreja formal, o movimento se organizava em escolas de pensamento, onde mestres e discípulos exploravam interpretações espirituais e complexas das Escrituras cristãs, dialogando com correntes filosóficas como o platonismo e o judaísmo helenístico.

O contexto do século II era marcado pela diversidade do cristianismo primitivo, com várias correntes teológicas competindo pela definição da ortodoxia.

Valentino, criador do valentinianismo
Valentino, criador do valentinianismo

Expansão do valentinianismo

Nesse cenário, o movimento se destacou por sua abordagem gnóstica, enfatizando a gnose – um conhecimento espiritual intuitivo – como caminho para a salvação, em contraste com a fé ou as obras defendidas por outros grupos cristãos. [2]

O movimento floresceu especialmente em centros urbanos como Roma, Alexandria e Antioquia, atraindo seguidores educados e intelectualizados. Valentino, descrito como um pregador carismático, fundou uma escola em Roma que se tornou um polo de disseminação de suas ideias. [3]

Seus discípulos mais notáveis, como Ptolomeu e Heracleon, desenvolveram e adaptaram seus ensinamentos, criando variações regionais do valentinianismo .[3]

Por exemplo, Ptolomeu elaborou uma cosmologia mais sistemática, enquanto Heracleon escreveu comentários sobre o Evangelho de João, reinterpretando-o sob uma perspectiva gnóstica.


Cosmologia valentiniana

A cosmologia valentiniana é um dos aspectos mais distintivos do movimento, caracterizada por uma visão hierárquica e espiritual do universo.

No cerne dessa cosmologia está o conceito do Pleroma, um reino divino perfeito habitado por entidades espirituais chamadas éons. Esses éons são emanações do Ser Supremo, frequentemente referido como o “Pai Inefável” ou “Abismo” (Bythos), que representam aspectos ou qualidades divinas, como Sabedoria (Sophia), Verdade (Aletheia) e Logos. [2]

De acordo com a narrativa valentiniana, a criação do mundo material resultou de uma perturbação no Pleroma. Sofia, um dos éons, experimentou uma “paixão” ou desejo de compreender plenamente o Pai, o que levou a uma ruptura cósmica.

Essa falha gerou o Demiurgo, uma entidade inferior que, ignorante do Pleroma, criou o mundo material imperfeito.

Diferentemente de outros sistemas gnósticos que retratam o Demiurgo como maligno, os valentinianos o viam como uma figura limitada, mas não necessariamente malévola [3].

Plérome de Valentin, da Histoire critique du Gnosticisme; Jacques Matéria, 1826, Vol. II, Placa II. Valentinianismo
Plérome de Valentin, da Histoire critique du Gnosticisme; Jacques Matéria, 1826, Vol. II, Placa II

A humanidade, nesse sistema, é composta por três elementos: o corpo material (hyle), a alma psíquica (psychē) e uma centelha divina (pneuma).

Os seres humanos são divididos em três categorias: os pneumáticos (espirituais), que possuem a centelha divina e estão destinados à salvação; os psíquicos, que têm potencial para a salvação, mas dependem da fé e das obras; e os hílicos (materiais), que estão presos à matéria e não alcançam a redenção [4].

A salvação, para os valentinianos, consiste na libertação do pneuma por meio da gnose – um conhecimento espiritual e intuitivo das realidades divinas, trazido por Cristo, um emissário do Pleroma.


Práticas e sacramentos do valentinianismo

As práticas valentinianas eram marcadas por rituais de iniciação que refletiam sua visão esotérica. Os sacramentos cristãos, como o batismo e a eucaristia, eram reinterpretados com significados espirituais profundos. [5]

Textos como o Evangelho de Filipe, encontrado em Nag Hammadi, sugerem que os valentinianos praticavam diferentes tipos de batismo, incluindo um “batismo espiritual” reservado aos iniciados que alcançavam a gnose [5].

A eucaristia, por sua vez, era vista como uma celebração da união com o divino, reforçando a conexão com o Pleroma.

Além disso, os valentinianos desenvolviam rituais de redenção, como a “câmara nupcial” (nymphōn), um sacramento simbólico que representava a reunificação da alma com o divino. [6]

Esses rituais eram frequentemente realizados em segredo, acessíveis apenas aos iniciados, o que reforçava o caráter esotérico do movimento [6].

Versão Autorizada da Bíblia King James 1611
Versão Autorizada da Bíblia King James 1611

Ética valentiniana

A ética valentiniana era diversa e dependia da interpretação de cada comunidade. Alguns grupos adotavam uma postura ascética, rejeitando os prazeres materiais para se concentrar na libertação do pneuma. Essa visão estava alinhada com a ideia de que a matéria era inferior e corruptível. [7]

Outros, no entanto, teriam adotado uma abordagem mais libertina, argumentando que os pneumáticos, por serem espiritualmente superiores, estavam imunes à corrupção material e, portanto, livres para agir sem restrições morais [7].

Essa dicotomia gerou críticas severas dos pais da Igreja, que acusavam os valentinianos de práticas imorais, embora tais acusações possam ter sido exageradas para deslegitimar o movimento.


Críticas patrísticas e fim do valentinianismo

O valentinianismo enfrentou forte oposição dos líderes cristãos ortodoxos, que o consideravam uma heresia perigosa. Irineu de Lyon, em sua obra Contra as Heresias (c. 180 d.C.), dedicou extensas seções à refutação das doutrinas valentinianas, criticando sua cosmologia complexa e sua interpretação esotérica das Escrituras [8].

Outros pais da Igreja, como Tertuliano e Clemente de Alexandria, também condenaram o movimento, acusando-o de distorcer os ensinamentos cristãos.

Com o fortalecimento do cristianismo ortodoxo e a consolidação do cânon bíblico, o movimento foi gradualmente suprimido, especialmente após o Concílio de Niceia (325 d.C.). No entanto, sua influência persistiu, especialmente em movimentos místicos e esotéricos posteriores.

Legado do valentinianismo

A redescoberta dos textos valentinianos na biblioteca de Nag Hammadi, em 1945, trouxe nova luz sobre o movimento. Documentos como o Evangelho da Verdade, o Evangelho de Filipe e o Tratado sobre a Ressurreição oferecem uma visão direta das crenças e práticas valentinianas, revelando a diversidade do cristianismo primitivo [9].

Esses textos demonstram que o movimento não era apenas uma heresia marginal, mas um sistema teológico sofisticado que dialogava com as correntes filosóficas e religiosas de sua época, incluindo o platonismo e o judaísmo helenístico.

O impacto do movimento pode ser observado no desenvolvimento de ideias teológicas, como a noção de salvação pela graça e a ênfase na experiência espiritual.

Além disso, sua cosmologia complexa influenciou movimentos gnósticos posteriores e continua a ser objeto de estudo em teologia, filosofia e história das religiões.

Códice II , um dos escritos gnósticos mais proeminentes encontrados na biblioteca de Nag Hammadi. Aqui estão mostrados o final do Apócrifo de João e o início do Evangelho de Tomé
Códice II , um dos escritos gnósticos mais proeminentes encontrados na biblioteca de Nag Hammadi. Aqui estão mostrados o final do Apócrifo de João e o início do Evangelho de Tomé

Aprenda mais

[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia

[Vídeo] GNOSTICISMO: A DOUTRINA QUE DESAFIOU A RELIGIÃO TRADICIONAL – Professor Responde 97. Prof. Jonathan Matthies.


Perguntas comuns

Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo.

O que é o gnosticismo valentiniano?

O gnosticismo valentiniano, fundado por Valentino, foi uma corrente gnóstica no século II. Estabelecida em Roma, se destacou por enfatizar a gnosis como via para a salvação, distinguindo o mundo espiritual e material.

O que os valentinianos defendiam?

Os valentinianos acreditavam no Pleroma, um reino divino habitado por Éons. Um desses Éons teria criado o mundo material, corruptível e mortal, que conhecemos.


Fontes

[1] Pagels, E. (1975). The Gnostic Gospels. New York: Random House.

[2] Layton, B. (1987). The Gnostic Scriptures. New York: Doubleday.

[3] Thomassen, E. (2006). The Spiritual Seed: The Church of the ‘Valentinians’. Leiden: Brill.

[4] Dunderberg, I. (2008). Beyond Gnosticism: Myth, Lifestyle, and Society in the School of Valentinus. New York: Columbia University Press.

[5] Evangelho de Filipe. In: Robinson, J. M. (Ed.). (1990). The Nag Hammadi Library. San Francisco: Harper.

[6] Turner, J. D. (2001). Sethian Gnosticism and the Platonic Tradition. Québec: Presses de l’Université Laval.

[7] Williams, M. A. (1996). Rethinking “Gnosticism”: An Argument for Dismantling a Dubious Category. Princeton: Princeton University Press.

[8] Irineu de Lyon. (c. 180 d.C.). Contra as Heresias. Tradução em: Grant, R. M. (1997). Irenaeus of Lyons. London: Routledge.

[9] Meyer, M. (Ed.). (2007). The Nag Hammadi Scriptures: The International Edition. New York: HarperOne.

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Diego Pereira do Nascimento
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