O valentinianismo foi um dos principais movimentos gnósticos do cristianismo primitivo, florescendo especialmente no século II d.C.
Derivado dos ensinamentos de Valentino de Roma, um teólogo e pensador influente, esse sistema não formava uma igreja institucionalizada, mas sim escolas de pensamento que promoviam uma interpretação esotérica e complexa da doutrina cristã.
Os valentinianos alegavam possuir uma tradição secreta que remontava ao apóstolo Paulo, transmitida por mestres como Teudas, discípulo de Paulo, conforme descrito em textos como o Evangelho da Verdade e outros documentos gnósticos [1].
Neste artigo apresentamos um pouco da história deste movimento, assim como suas implicações teológicas.
História do valentinianismo
O valentinianismo, um dos principais movimentos gnósticos do cristianismo primitivo, surgiu no século II d.C., em um período de grande efervescência religiosa e filosófica no mundo mediterrâneo.
Seu fundador, Valentino de Roma, foi um teólogo cristão de origem provavelmente egípcia, ativo em Roma por volta de 130-160 d.C.
Valentino afirmava ter recebido ensinamentos esotéricos que remontavam ao apóstolo Paulo, transmitidos por um discípulo chamado Teudas, o que conferia ao movimento uma aura de legitimidade apostólica. [1]
Embora não tenha constituído uma igreja formal, o movimento se organizava em escolas de pensamento, onde mestres e discípulos exploravam interpretações espirituais e complexas das Escrituras cristãs, dialogando com correntes filosóficas como o platonismo e o judaísmo helenístico.
O contexto do século II era marcado pela diversidade do cristianismo primitivo, com várias correntes teológicas competindo pela definição da ortodoxia.

Expansão do valentinianismo
Nesse cenário, o movimento se destacou por sua abordagem gnóstica, enfatizando a gnose – um conhecimento espiritual intuitivo – como caminho para a salvação, em contraste com a fé ou as obras defendidas por outros grupos cristãos. [2]
O movimento floresceu especialmente em centros urbanos como Roma, Alexandria e Antioquia, atraindo seguidores educados e intelectualizados. Valentino, descrito como um pregador carismático, fundou uma escola em Roma que se tornou um polo de disseminação de suas ideias. [3]
Seus discípulos mais notáveis, como Ptolomeu e Heracleon, desenvolveram e adaptaram seus ensinamentos, criando variações regionais do valentinianismo .[3]
Por exemplo, Ptolomeu elaborou uma cosmologia mais sistemática, enquanto Heracleon escreveu comentários sobre o Evangelho de João, reinterpretando-o sob uma perspectiva gnóstica.
Cosmologia valentiniana
A cosmologia valentiniana é um dos aspectos mais distintivos do movimento, caracterizada por uma visão hierárquica e espiritual do universo.
No cerne dessa cosmologia está o conceito do Pleroma, um reino divino perfeito habitado por entidades espirituais chamadas éons. Esses éons são emanações do Ser Supremo, frequentemente referido como o “Pai Inefável” ou “Abismo” (Bythos), que representam aspectos ou qualidades divinas, como Sabedoria (Sophia), Verdade (Aletheia) e Logos. [2]
De acordo com a narrativa valentiniana, a criação do mundo material resultou de uma perturbação no Pleroma. Sofia, um dos éons, experimentou uma “paixão” ou desejo de compreender plenamente o Pai, o que levou a uma ruptura cósmica.
Essa falha gerou o Demiurgo, uma entidade inferior que, ignorante do Pleroma, criou o mundo material imperfeito.
Diferentemente de outros sistemas gnósticos que retratam o Demiurgo como maligno, os valentinianos o viam como uma figura limitada, mas não necessariamente malévola [3].

A humanidade, nesse sistema, é composta por três elementos: o corpo material (hyle), a alma psíquica (psychē) e uma centelha divina (pneuma).
Os seres humanos são divididos em três categorias: os pneumáticos (espirituais), que possuem a centelha divina e estão destinados à salvação; os psíquicos, que têm potencial para a salvação, mas dependem da fé e das obras; e os hílicos (materiais), que estão presos à matéria e não alcançam a redenção [4].
A salvação, para os valentinianos, consiste na libertação do pneuma por meio da gnose – um conhecimento espiritual e intuitivo das realidades divinas, trazido por Cristo, um emissário do Pleroma.
Práticas e sacramentos do valentinianismo
As práticas valentinianas eram marcadas por rituais de iniciação que refletiam sua visão esotérica. Os sacramentos cristãos, como o batismo e a eucaristia, eram reinterpretados com significados espirituais profundos. [5]
Textos como o Evangelho de Filipe, encontrado em Nag Hammadi, sugerem que os valentinianos praticavam diferentes tipos de batismo, incluindo um “batismo espiritual” reservado aos iniciados que alcançavam a gnose [5].
A eucaristia, por sua vez, era vista como uma celebração da união com o divino, reforçando a conexão com o Pleroma.
Além disso, os valentinianos desenvolviam rituais de redenção, como a “câmara nupcial” (nymphōn), um sacramento simbólico que representava a reunificação da alma com o divino. [6]
Esses rituais eram frequentemente realizados em segredo, acessíveis apenas aos iniciados, o que reforçava o caráter esotérico do movimento [6].

Ética valentiniana
A ética valentiniana era diversa e dependia da interpretação de cada comunidade. Alguns grupos adotavam uma postura ascética, rejeitando os prazeres materiais para se concentrar na libertação do pneuma. Essa visão estava alinhada com a ideia de que a matéria era inferior e corruptível. [7]
Outros, no entanto, teriam adotado uma abordagem mais libertina, argumentando que os pneumáticos, por serem espiritualmente superiores, estavam imunes à corrupção material e, portanto, livres para agir sem restrições morais [7].
Essa dicotomia gerou críticas severas dos pais da Igreja, que acusavam os valentinianos de práticas imorais, embora tais acusações possam ter sido exageradas para deslegitimar o movimento.
Críticas patrísticas e fim do valentinianismo
O valentinianismo enfrentou forte oposição dos líderes cristãos ortodoxos, que o consideravam uma heresia perigosa. Irineu de Lyon, em sua obra Contra as Heresias (c. 180 d.C.), dedicou extensas seções à refutação das doutrinas valentinianas, criticando sua cosmologia complexa e sua interpretação esotérica das Escrituras [8].
Outros pais da Igreja, como Tertuliano e Clemente de Alexandria, também condenaram o movimento, acusando-o de distorcer os ensinamentos cristãos.
Com o fortalecimento do cristianismo ortodoxo e a consolidação do cânon bíblico, o movimento foi gradualmente suprimido, especialmente após o Concílio de Niceia (325 d.C.). No entanto, sua influência persistiu, especialmente em movimentos místicos e esotéricos posteriores.
Legado do valentinianismo
A redescoberta dos textos valentinianos na biblioteca de Nag Hammadi, em 1945, trouxe nova luz sobre o movimento. Documentos como o Evangelho da Verdade, o Evangelho de Filipe e o Tratado sobre a Ressurreição oferecem uma visão direta das crenças e práticas valentinianas, revelando a diversidade do cristianismo primitivo [9].
Esses textos demonstram que o movimento não era apenas uma heresia marginal, mas um sistema teológico sofisticado que dialogava com as correntes filosóficas e religiosas de sua época, incluindo o platonismo e o judaísmo helenístico.
O impacto do movimento pode ser observado no desenvolvimento de ideias teológicas, como a noção de salvação pela graça e a ênfase na experiência espiritual.
Além disso, sua cosmologia complexa influenciou movimentos gnósticos posteriores e continua a ser objeto de estudo em teologia, filosofia e história das religiões.

Aprenda mais
[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia
[Vídeo] GNOSTICISMO: A DOUTRINA QUE DESAFIOU A RELIGIÃO TRADICIONAL – Professor Responde 97. Prof. Jonathan Matthies.
Perguntas comuns
Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo.
O que é o gnosticismo valentiniano?
O gnosticismo valentiniano, fundado por Valentino, foi uma corrente gnóstica no século II. Estabelecida em Roma, se destacou por enfatizar a gnosis como via para a salvação, distinguindo o mundo espiritual e material.
O que os valentinianos defendiam?
Os valentinianos acreditavam no Pleroma, um reino divino habitado por Éons. Um desses Éons teria criado o mundo material, corruptível e mortal, que conhecemos.
Fontes
[1] Pagels, E. (1975). The Gnostic Gospels. New York: Random House.
[2] Layton, B. (1987). The Gnostic Scriptures. New York: Doubleday.
[3] Thomassen, E. (2006). The Spiritual Seed: The Church of the ‘Valentinians’. Leiden: Brill.
[4] Dunderberg, I. (2008). Beyond Gnosticism: Myth, Lifestyle, and Society in the School of Valentinus. New York: Columbia University Press.
[5] Evangelho de Filipe. In: Robinson, J. M. (Ed.). (1990). The Nag Hammadi Library. San Francisco: Harper.
[6] Turner, J. D. (2001). Sethian Gnosticism and the Platonic Tradition. Québec: Presses de l’Université Laval.
[7] Williams, M. A. (1996). Rethinking “Gnosticism”: An Argument for Dismantling a Dubious Category. Princeton: Princeton University Press.
[8] Irineu de Lyon. (c. 180 d.C.). Contra as Heresias. Tradução em: Grant, R. M. (1997). Irenaeus of Lyons. London: Routledge.
[9] Meyer, M. (Ed.). (2007). The Nag Hammadi Scriptures: The International Edition. New York: HarperOne.
- Enoque, filho de Caim – 15 de agosto de 2025
- Enoque (Bíblia) – 15 de agosto de 2025
- Sete, filho de Adão (Bíblia) – 15 de agosto de 2025