Teologia Pública

Teologia pública conecta fé cristã e sociedade, rompendo a ideia de fé privada. Engaja em debates sociais, políticos e culturais.

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11 minutos de leitura

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A Teologia pública surge como um campo dinâmico que busca conectar a fé cristã com as questões prementes da sociedade, rompendo com a ideia de que a fé deve ser restrita ao âmbito privado.

Este ramo da teologia propõe um diálogo construtivo entre as convicções teológicas e os desafios políticos, sociais, econômicos e culturais, oferecendo perspectivas éticas e morais para o bem comum.

Sua relevância aumenta em um mundo complexo e plural, onde as vozes religiosas são chamadas a contribuir para o debate público.

Neste artigo explicamos um pouco deste ramo de estudo teológico pouco conhecido.

O surgimento da Teologia Pública

A teologia pública não é um conceito inteiramente novo, mas sua formalização e reconhecimento como disciplina distinta ganharam força, especialmente a partir da segunda metade do século XX.

O contexto pós-Segunda Guerra Mundial e o ressurgimento da preocupação com a ética e a justiça social impulsionaram o desejo de uma fé mais engajada com o mundo [1]. Teólogos como Martin Marty nos Estados Unidos, por exemplo, observaram o declínio da “religião civil” e a necessidade de uma voz religiosa articulada no espaço público [2].

No entanto, as raízes históricas podem ser rastreadas até a Reforma Protestante, com teólogos como João Calvino que defenderam a transformação da sociedade através dos princípios cristãos.

Calvino, em Genebra, buscou aplicar a teologia não apenas à igreja, mas também à política, à economia e à educação, visando a construção de uma sociedade que refletisse os valores do Reino de Deus [3].

O termo em si foi popularizado por Ronald Thiemann, que em sua obra “Religion in Public Life: A Dilemma for Democracy” (1996), argumentou sobre a necessidade de que as tradições religiosas articulassem suas visões no debate público, não apenas em termos de ética pessoal, mas contribuindo para a formulação de políticas e a construção da cidadania [4].

A teologia pública busca, assim, resgatar o papel profético da igreja na sociedade, que vai além das paredes dos templos, mas se estende para a praça pública, onde as decisões que afetam a vida de todos são tomadas.

Homem pregando no meio da rua (Teologia Pública)
Homem pregando no meio da rua (Teologia Pública)

Pilares e Conceitos da Teologia Pública

A teologia pública é sustentada por alguns pilares conceituais que orientam sua prática e seu discurso. Em primeiro lugar, ela enfatiza o engajamento com o bem comum, reconhecendo que a fé cristã não é apenas uma busca individual pela salvação, mas também um chamado à responsabilidade coletiva.

Isto implica dialogar com as estruturas da sociedade para promover a justiça, a paz e a dignidade humana para todos, especialmente para os marginalizados e oprimidos [5].

Diálogo e Contextualização

A natureza dialógica da teologia pública é um dos seus aspectos mais importantes. Ela não apenas fala para a sociedade, mas também escuta da sociedade, buscando compreender suas dores, esperanças e desafios.

Esse diálogo se dá com múltiplas esferas – política, economia, cultura, ciência, educação – e com diversas cosmovisões, sejam elas religiosas ou seculares.

O objetivo não é impor uma visão confessional, mas oferecer insights e valores que possam enriquecer o debate público de forma acessível e relevante [6].

Pastor presbiteriano pregando na igreja
Pastor presbiteriano pregando na igreja

A Vocação Profética e Pastoral

A teologia pública exerce uma vocação dual: profética e pastoral. A dimensão profética exige que a igreja e seus teólogos denunciem as injustiças, as estruturas de pecado e as falhas morais da sociedade.

Inspirada nos profetas do Antigo Testamento, que confrontavam reis e nações em nome da justiça de Deus (Amós 5:24; Isaías 1:17), a teologia pública desafia o status quo quando este se opõe aos valores do Reino de Deus.

Paralelamente, sua dimensão pastoral busca cuidar e servir à sociedade, oferecendo esperança, consolo e solidariedade. Isso se manifesta em ações concretas de serviço, no apoio aos vulneráveis e na construção de comunidades que demonstrem os valores do amor e da compaixão (Mateus 25:35-40).

A igreja, como corpo de Cristo, é chamada a ser um sinal e um instrumento da graça de Deus no mundo, manifestando Sua preocupação com a totalidade da existência humana.

Fundamentos Bíblicos para a Teologia Pública

A teologia pública encontra profundos fundamentos nas Escrituras, que reiteram o chamado do povo de Deus para um engajamento significativo com o mundo. A Bíblia apresenta uma visão integral do Reino de Deus que abrange todas as esferas da vida, não se restringindo apenas ao indivíduo ou à esfera eclesiástica.

O Mandato Cultural e a Responsabilidade Social

Desde os primeiros capítulos de Gênesis, a humanidade recebe o mandato cultural para cuidar da criação e multiplicá-la (Gênesis 1:28). Este mandato implica uma responsabilidade ativa sobre o desenvolvimento da sociedade e do meio ambiente.

O povo de Israel foi instruído a buscar a justiça em suas leis e práticas, a cuidar do estrangeiro, da viúva e do órfão, demonstrando uma preocupação social que transcende o âmbito religioso estrito [7].

Os profetas do Antigo Testamento, como já mencionado, são paradigmas da teologia pública. Eles não se calaram diante da corrupção, da opressão dos pobres e da injustiça sistêmica.

Suas mensagens eram dirigidas à nação, aos líderes e ao povo, conclamando-os ao arrependimento e à prática da justiça, que é vista como intrínseca à verdadeira adoração a Deus (Oséias 6:6; Miqueias 6:8).

Elias contra os profetas de Baal
Elias contra os profetas de Baal

O Ensino de Jesus e o Reino de Deus

Jesus Cristo encarnou perfeitamente os princípios da teologia pública. Sua pregação sobre o Reino de Deus não era apenas sobre uma realidade futura, mas sobre uma transformação presente que impacta todas as dimensões da existência.

Ele ensinou seus discípulos a serem “sal da terra e luz do mundo” (Mateus 5:13-16), figuras que indicam uma presença transformadora e influente na sociedade. O “sal” preserva e dá sabor, enquanto a “luz” dissipa as trevas e guia.

Cristo demonstrou preocupação com os enfermos, os famintos, os marginalizados e os excluídos.

Sua missão, conforme descrita em Lucas 4:18-19, era “anunciar boas-novas aos pobres, proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor”.

Isso demonstra um programa que é eminentemente público e social, buscando a restauração da dignidade humana e a promoção da justiça [8].

Ilustração de Jesus Cristo curando um homem leproso
Ilustração de Jesus Cristo curando um homem leproso

O Testemunho da Igreja Primitiva

A igreja primitiva, conforme descrita em Atos dos Apóstolos, também praticava uma forma incipiente de teologia pública.

Os cristãos compartilhavam seus bens, cuidavam uns dos outros e, através de seu testemunho de amor e justiça, impactavam a sociedade ao seu redor (Atos 2:44-47).

Eles desafiavam as normas sociais injustas de seu tempo, mesmo enfrentando perseguição, afirmando a soberania de Cristo sobre todas as autoridades terrenas (Atos 5:29).

Apóstolo Paulo pregando o Evangelho (Vida de Paulo, de perseguidor à apóstolo)
Apóstolo Paulo pregando o Evangelho (Vida de Paulo, de perseguidor à apóstolo)

Desafios da Teologia Pública

A prática da teologia pública no cenário contemporâneo apresenta desafios complexos, exigindo discernimento e sabedoria. Em uma sociedade cada vez mais pluralista e secularizada, a voz da fé pode ser facilmente marginalizada ou mal interpretada [9].

O risco de sincretismo, onde a teologia perde sua identidade bíblica ao tentar agradar a cultura, ou o perigo de um proselitismo agressivo, que ignora o diálogo respeitoso, são preocupações constantes.

Pluralismo e Neutralidade do Estado

Um dos maiores desafios reside no reconhecimento do pluralismo religioso e da necessidade de respeito à autonomia do estado.

A teologia pública deve navegar entre a tentação de se tornar uma “religião de estado” ou de se isolar em uma guetificação religiosa.

Ela busca influenciar a praça pública não através do poder político direto ou da imposição de dogmas, mas através da persuasão moral e da contribuição de valores éticos para o debate [10].

Dois pastores olhando para a Bíblia (Mudança de Pastor)
Dois pastores olhando para a Bíblia

Diferentes Modelos de Teologia Pública

Existem diversas abordagens para a teologia pública, cada uma com suas ênfases:

  • Modelo Profético: Prioriza a crítica às estruturas de injustiça e o chamado à transformação radical da sociedade, muitas vezes adotando uma postura de confronto.
  • Modelo Apologético: Foca na defesa da relevância da fé cristã para as questões públicas, buscando demonstrar a razoabilidade e a contribuição do pensamento cristão para o bem-estar social.
  • Modelo Dialógico: Enfatiza a participação em conversas inter-religiosas e interculturais, buscando pontos de convergência para o trabalho em comum pelo bem social, sem abrir mão da identidade cristã.
  • Modelo Civil/Cívico: Vê a religião como uma fonte de capital social e moral para a vida cívica, contribuindo para a coesão social e para a formação de cidadãos responsáveis.

Cada modelo busca, à sua maneira, cumprir o chamado para que a fé cristã não se cale diante dos desafios do mundo, mas contribua ativamente para a construção de uma sociedade mais justa e humana.

Etimologia de Teologia Pública

Para compreender plenamente a teologia pública, é útil examinar a origem e o significado de seus termos constituintes.

Teologia

A palavra “teologia” deriva do grego antigo theología (θεολογία), que é uma junção de theós (θεός), que significa “Deus”, e logía (λογία), que se refere a “estudo”, “discurso” ou “razão” [11].

Assim, “teologia” pode ser literalmente entendida como o “estudo de Deus”, o “discurso sobre Deus” ou a “razão a respeito de Deus”. No contexto cristão, abrange o estudo sistemático das doutrinas, práticas e experiências relacionadas a Deus e à fé.

Pública

O termo “pública” tem suas raízes no latim publicus, que significa “do povo”, “pertencente ao povo” ou “comum”. É derivado de populus, que é “povo”. A ideia de “público” está associada a algo que é aberto a todos, acessível a todos, ou que diz respeito à comunidade em geral, em contraste com o que é privado ou individual [12].

No contexto da teologia pública, refere-se ao espaço coletivo onde são debatidas e decididas as questões que afetam a vida em sociedade – o espaço político, cultural, econômico e social. Portanto, “teologia pública” designa um estudo de Deus e da fé cristã que busca engajar-se ativamente e contribuir para o domínio comum e para as discussões que moldam a vida coletiva.

Aprenda mais

[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia.

[Vídeo] O que é teologia pública? – BTCast 597. Bibotalk.

Perguntas comuns

Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo teológico pouco conhecido.

O que se entende por teologia pública?

Teologia pública é a reflexão teológica que busca dialogar e interagir com o espaço público. Ela se manifesta em questões sociais, políticas, econômicas e culturais, procurando contribuir para o bem comum e a justiça a partir de uma perspectiva de fé.

Qual é a finalidade da teologia?

A finalidade da teologia é entender, sistematizar e comunicar a fé em Deus. Ela serve para interpretar as escrituras, articular as doutrinas e fornecer bases para a prática religiosa, ajudando indivíduos e comunidades a aprofundar sua compreensão sobre o sagrado.

Quais faculdades públicas têm teologia?

No Brasil, faculdades públicas não oferecem cursos de teologia na graduação. A maior parte dos cursos de teologia é ministrada em instituições privadas e confessionais. Existem algumas universidades públicas que oferecem cursos em áreas correlatas, como Ciências da Religião.

Fontes

[1] Stackhouse Jr., Max L. “Public Theology: The Critical Project of an Engaged Faith.” William B. Eerdmans Publishing Company, 2004.

[2] Marty, Martin E. “The Public Church: Mainline-Evangelical-Catholic.” Crossroad, 1981.

[3] Wendel, François. “Calvin: Origins and Development of His Religious Thought.” Baker Book House, 1997.

Demais fontes

[4] Thiemann, Ronald F. “Religion in Public Life: A Dilemma for Democracy.” Georgetown University Press, 1996.

[5] De Gruchy, John W. “Public Theology as Christian Witness: Exploring the Convictions of an Embodied Faith.” Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2007.

[6] Schmiechen, Peter. “The Social Gospel and the Public Church: Defining Faith-Based Community Engagement.” Fortress Press, 2013.

[7] Wright, Christopher J. H. “Old Testament Ethics for the People of God.” IVP Academic, 2004.

[8] Bosch, David J. “Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission.” Orbis Books, 1991.

[9] Habermas, Jürgen. “Religion and Rationality: Essays on Reason, God, and Modernity.” The MIT Press, 2002.

[10] Stout, Jeffrey. “Blessed Are the Pure in Heart: Moral Philosophy and the Evangelical Imagination.” Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2010.

[11] Liddell, Henry George; Scott, Robert. “A Greek-English Lexicon.” Oxford University Press, 1940.

[12] Lewis, Charlton T.; Short, Charles. “A Latin Dictionary.” Oxford University Press, 1879.

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