O Novacianismo, também chamado de Novacionismo, foi um movimento teológico que emergiu no século III na Igreja Cristã, notabilizado por sua rigorosa postura sobre a readmissão de cristãos que haviam apostatado durante períodos de perseguição intensa.
Liderado pelo presbítero romano Novaciano, este ensino desencadeou um dos primeiros grandes cismas na história do cristianismo, influenciando debates sobre a natureza da Igreja, o perdão dos pecados e a disciplina eclesiástica.
O movimento levantou questões profundas sobre a misericórdia de Deus e os limites da autoridade da Igreja, forçando a cristandade a articular sua doutrina sobre a penitência e a restauração.
História do Novacianismo
Para compreender o Novacianismo, é importante analisar o ambiente de intensa perseguição que a Igreja Cristã enfrentou no século III, especialmente durante o reinado do imperador Décio (249-251 d.C.).
A perseguição de Décio e o dilema da Igreja
O édito de Décio foi o primeiro a exigir que todos os cidadãos do Império Romano, sem exceção, realizassem um sacrifício público aos deuses romanos na presença de magistrados.
Este ato era selado com um certificado (libellus) que comprovava a lealdade do cidadão ao império e suas tradições pagãs [1].
Muitos cristãos, confrontados com a ameaça de tortura, prisão ou morte, cederam à pressão.
Outros, por sua vez, permaneceram firmes em sua fé, enfrentando o martírio. Aqueles que sucumbiram à exigência imperial ficaram conhecidos como os lapsi, termo latino para “os caídos” [2].
Essa situação, sem precedentes em sua escala, gerou um profundo dilema pastoral e teológico. Após o fim da perseguição, um grande número de lapsi, tomados pelo arrependimento, buscou ser reintegrado à comunhão da Igreja.
A questão de como lidar com eles dividiu profundamente a liderança cristã, criando um debate acalorado sobre os limites do perdão e a natureza da disciplina eclesiástica.

As categorias dos Lapsi
Os lapsi não eram um grupo homogêneo. A Igreja os categorizava com base na natureza de sua apostasia, o que influenciava a severidade da penitência exigida para sua readmissão.
- Sacrificati: Aqueles que efetivamente ofereceram sacrifícios aos ídolos romanos. Este era considerado o grupo mais grave de apóstatas.
- Thurificati: Aqueles que apenas queimaram incenso diante das imagens dos deuses, um ato de adoração pagã.
- Libellatici: Aqueles que não realizaram os ritos pagãos, mas, através de suborno ou influência, obtiveram um certificado (libellus) falso que atestava seu cumprimento. Embora não tivessem cometido idolatria direta, seu ato foi visto como uma fraude e uma negação implícita da fé [3].
A questão central que dividiu a Igreja era se esses diferentes graus de apostasia poderiam ser perdoados pela Igreja terrena e, em caso afirmativo, sob quais condições.

Novaciano e suas convicções
No centro desta controvérsia estava Novaciano, um presbítero respeitado na Igreja de Roma. Ele era conhecido por sua erudição teológica, sua habilidade como escritor e sua adesão ao pensamento do teólogo norte-africano Tertuliano [4].
A defesa de uma Igreja Pura
A teologia de Novaciano era marcada por um rigorismo moral inflexível. Ele acreditava firmemente que a Igreja deveria ser uma comunidade de santos, pura e sem mácula. Em sua visão, permitir que apóstatas, especialmente os sacrificati, retornassem à comunhão, contaminaria a santidade da Igreja e comprometeria seu testemunho.
Ele argumentava que pecados “mortais” cometidos após o batismo, como a idolatria, o homicídio e o adultério, eram imperdoáveis pela Igreja.
Embora Novaciano não negasse que Deus, em Sua soberania, pudesse perdoar tal pecador na eternidade, ele insistia que a Igreja terrena não possuía a autoridade para conceder a absolvição ou restaurar a comunhão a esses indivíduos.
Eles poderiam se arrepender e viver em penitência pelo resto de suas vidas, mas o perdão final ficaria entre eles e Deus [5].

O cisma em Roma: Novaciano e Cornélio
A tensão atingiu seu ponto de ebulição em 251 d.C., após o martírio do Papa Fabiano. A eleição de um novo bispo para Roma dividiu a comunidade. A facção majoritária, que defendia uma abordagem mais misericordiosa para com os lapsi, elegeu Cornélio.
Cornélio, alinhado com o pensamento de Cipriano de Cartago, acreditava que os lapsi arrependidos poderiam ser readmitidos à comunhão após um período apropriado e severo de penitência [6].
Novaciano e seus seguidores, a facção rigorista, viram a eleição de Cornélio como uma traição à pureza da Igreja. Em um ato de desafio direto, Novaciano foi consagrado bispo por três bispos da Itália, declarando-se o verdadeiro Bispo de Roma e tornando-se, efetivamente, um antipapa.
Este ato formalizou o cisma novacianista, criando uma igreja separada que se opunha à autoridade de Cornélio e à sua política de misericórdia [7].

Doutrina do Novacianismo
O Novacianismo se estruturou em torno de uma eclesiologia (doutrina da Igreja) e uma soteriologia (doutrina da salvação) altamente rigoristas.
A inadmissibilidade dos Lapsi e pecados mortais
O ponto central e definidor do Novacianismo era a crença de que a Igreja não tinha o poder de perdoar pecados considerados “mortais” cometidos após o batismo. A apostasia, em particular, era vista como uma ruptura irreparável da aliança batismal.
A Igreja poderia exortar ao arrependimento, mas não poderia oferecer a reconciliação sacramental. Os novacianistas frequentemente se baseavam em passagens bíblicas que falam da impossibilidade de renovar o arrependimento para aqueles que caem após terem sido iluminados (como Hebreus 6:4-6) para justificar sua posição [8].
A natureza da Igreja como “Comunidade dos Puros”
Os novacianistas se autodenominavam cathari (do grego καθαροί, katharoi), que significa “os puros”.
Este nome reflete sua eclesiologia: a Igreja não é uma instituição mista de santos e pecadores (como na parábola do trigo e do joio), mas uma comunidade exclusiva de santos.
A presença de pecadores impenitentes ou apóstatas confessos mancharia a “noiva de Cristo” e invalidaria sua santidade.
Esta visão contrastava fortemente com a da Igreja Católica (universal), defendida por líderes como Cornélio e Cipriano. Para eles, a Igreja era como a arca de Noé, um lugar de salvação que continha tanto animais “puros” quanto “impuros”.
A Igreja era vista como um “hospital para pecadores”, um lugar de cura e restauração, não apenas um santuário para os já perfeitos [9].

A prática do rebatismo
Uma consequência lógica da eclesiologia novacianista era a prática do rebatismo. Eles acreditavam que o batismo administrado pela Igreja Católica, que consideravam “corrompida” por sua leniência com os lapsi, era inválido.
Portanto, qualquer cristão que desejasse se juntar à igreja novacianista precisava ser rebatizado. Esta prática aprofundou ainda mais o cisma, pois negava a validade dos sacramentos da Igreja principal e era vista como uma heresia grave por teólogos como Agostinho [10].
Confrontos teológicos e o legado do Novacianismo
O cisma novacianista provocou uma forte reação da Igreja majoritária, forçando-a a articular mais claramente suas doutrinas sobre penitência, perdão e a natureza da Igreja.
A oposição de Cipriano de Cartago
O Bispo Cipriano de Cartago foi um dos oponentes mais vocais e influentes de Novaciano.
Em suas cartas e tratados, como Sobre a Unidade da Igreja, Cipriano argumentou que não pode haver salvação fora da única Igreja Católica e que o cisma era um pecado tão grave quanto a apostasia.
Cipriano defendia um caminho intermediário entre o laxismo (readmissão imediata) e o rigorismo de Novaciano.
Ele insistia em um período de penitência pública e sincera para os lapsi, cuja duração e severidade dependeriam da gravidade de sua ofensa, com a readmissão sendo concedida pela autoridade do bispo [11].

Condenação e persistência
O Novacianismo foi formalmente condenado como um cisma e uma heresia em vários sínodos, incluindo um realizado em Roma em 251 d.C., que excomungou Novaciano e seus seguidores. Apesar disso, o movimento demonstrou uma notável resiliência. A Igreja Novacianista estabeleceu sua própria hierarquia episcopal e se espalhou por todo o Império Romano, da Espanha à Mesopotâmia.
As comunidades novacianistas persistiram por vários séculos, mantendo sua identidade como a “Igreja dos Puros”. Elas foram reconhecidas como uma igreja legal sob o imperador Constantino, mas enfrentaram perseguição posterior de imperadores que buscavam a unidade religiosa. A seita sobreviveu até o século VII, e vestígios dela podem ter durado ainda mais tempo em algumas regiões.
Legado
O Novacianismo, embora tenha fracassado em se tornar a corrente principal do cristianismo, deixou um legado duradouro.
Ele forçou a Igreja a desenvolver um sistema penitencial mais estruturado e a afirmar teologicamente que a autoridade de “ligar e desligar”, concedida por Cristo aos apóstolos, incluía o poder de perdoar pecados graves cometidos após o batismo.
O debate ecoa até hoje em discussões sobre disciplina eclesiástica e a busca pelo equilíbrio entre a santidade e a misericórdia.
Etimologia e significado do Novacianismo
O termo Novacianismo deriva diretamente do nome de seu fundador, Novaciano (em latim, Novatianus), o presbítero romano que liderou o cisma. O sufixo “-ismo” é usado para designar uma doutrina, sistema ou movimento de pensamento associado a uma pessoa ou ideia.
Portanto, “Novacianismo” significa literalmente “a doutrina de Novaciano”. O nome encapsula seu sistema teológico, centrado na pureza da Igreja e na recusa de absolvição eclesiástica para pecados mortais pós-batismais. Embora seus seguidores preferissem o nome katharoi (“puros”), o termo “novacianista” foi o nome dado por seus oponentes e que a história adotou para descrever este influente movimento cismático.
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Perguntas comuns
Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste movimento cristão do século II d.C.
Quem foi Novaciano?
Novaciano foi um presbítero e teólogo romano do século III. Conhecido por seu rigor moral, ele se opôs à eleição do Papa Cornélio. Foi consagrado bispo por seus seguidores, tornando-se um antipapa e iniciando um cisma por acreditar que a Igreja não deveria perdoar pecados graves.
O que foi o novacionismo?
O Novacianismo foi um movimento cismático cristão do século III, liderado por Novaciano. Sua doutrina principal era que a Igreja não tinha autoridade para perdoar pecados mortais, como a apostasia, cometidos após o batismo. Seus seguidores se consideravam a “Igreja dos puros” (katharoi).
Fontes
[1] Frend, W. H. C. (1984). The Rise of Christianity. Fortress Press.
[2] Schaff, P. (1910). History of the Christian Church, Vol. II: Ante-Nicene Christianity, A.D. 100-325. Wm. B. Eerdmans Publishing Co.
[3] Papandrea, J. L. (2012). Reading the Early Church Fathers: From the Didache to Nicaea. Paulist Press.
Demais fontes
[4] González, J. L. (2010). The Story of Christianity, Vol. 1: The Early Church to the Dawn of the Reformation. HarperOne.
[5] Tertuliano. De Pudicitia (Sobre a Modéstia).
[6] Eusébio de Cesareia. História Eclesiástica, Livro VI, Capítulo 43.
[7] Cross, F. L., & Livingstone, E. A. (Eds.). (2005). The Oxford Dictionary of the Christian Church (3rd ed. rev.). Oxford University Press.
[8] Kelly, J. N. D. (1978). Early Christian Doctrines (Rev. ed.). HarperOne.
[9] Cipriano de Cartago. De Lapsis (Sobre os Caídos).
[10] Agostinho de Hipona. De Baptismo, Contra Donatistas.
[11] Cipriano de Cartago. Epístolas.
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