Naassenos

Os Naassenos eram gnósticos que viam a serpente como sabedoria divina e salvação pelo gnosis. Foram uma grande seita no início da Igreja.

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Os naassenos representam uma das mais intrigantes seitas gnósticas que surgiram nos séculos II e III d.C., num período em que o cristianismo ainda definia as suas principais doutrinas teológicas.

Estudar essa seita ajuda a entendermos melhor a história da Igreja e o desenvolvimento da Teologia no primeiro milênio.

Neste artigo apresentamos a história desta seita e seus principais conceitos.

História dos naassenos

Nos primeiros séculos do cristianismo, a fé não era um bloco monolítico, mas um caldeirão vibrante e por vezes caótico de ideias.

Enquanto os apóstolos e seus sucessores trabalhavam para estabelecer a doutrina que se tornaria a ortodoxia cristã, surgiram inúmeros outros grupos com interpretações radicalmente diferentes.

Dentre eles, poucos eram tão intrigantes quanto os naassenos, uma seita gnóstica que floresceu nos séculos II e III d.C.

O nome deles, derivado da palavra hebraica para “serpente” (na’ash), já nos dá uma pista sobre sua crença mais chocante: eles veneravam a serpente do Jardim do Éden, não como um símbolo do mal, mas como uma heroína portadora da sabedoria.

Ilustração que representa a reunião de uma seita cristã (Naassenos)
Ilustração que representa a reunião de uma seita cristã (Naassenos)

O cenário gnóstico

Para entender os naassenos, precisamos primeiro compreender o universo de onde eles vieram: o Gnosticismo. Este não era um movimento unificado, mas um conjunto de sistemas religiosos que compartilhavam algumas ideias centrais.

Pensamentos gnósticos

Para os gnósticos, a salvação não era alcançada pela fé na morte e ressurreição de Cristo, como ensinava a Igreja, mas através de um conhecimento secreto e revelado, acessível apenas a um pequeno grupo de “eleitos”.

A visão de mundo gnóstica era profundamente pessimista em relação ao mundo material. Eles acreditavam que o universo físico, incluindo nossos corpos, era uma prisão, uma criação falha e inerentemente má.

Este mundo não teria sido criado por um Deus supremo e bom, mas por uma divindade inferior, ignorante e às vezes malévola, a quem eles chamavam de Demiurgo.

Muitos grupos gnósticos, incluindo os naassenos, identificavam este Demiurgo com o Deus do Antigo Testamento [2].

Dentro de cada ser humano, diziam eles, existe uma “centelha divina”, um fragmento do reino espiritual superior que ficou aprisionado na matéria.

O objetivo da vida era, portanto, despertar e libertar essa centelha, e a gnosis era o único caminho para essa libertação.

Códice II , um dos escritos gnósticos mais proeminentes encontrados na biblioteca de Nag Hammadi. Aqui estão mostrados o final do Apócrifo de João e o início do Evangelho de Tomé
Códice II , um dos escritos gnósticos mais proeminentes encontrados na biblioteca de Nag Hammadi. Aqui estão mostrados o final do Apócrifo de João e o início do Evangelho de Tomé

Origem dos naassenos

Os naassenos eram uma das primeiras e mais importantes seitas gnósticas. A maior parte do que sabemos sobre eles vem dos escritos de seus oponentes, principalmente de Hipólito de Roma, um líder da igreja do século III que escreveu uma obra detalhada chamada Refutação de Todas as Heresias. Embora ele os descrevesse como hereges, seu relato é inestimável por preservar trechos de seus hinos e doutrinas [3].

Para legitimar seus ensinamentos, os naassenos afirmavam que sua sabedoria secreta havia sido transmitida por Tiago, o Justo, irmão de Jesus, a uma discípula chamada Mariamne. Ao criar essa linha de sucessão, eles tentavam rivalizar com a autoridade apostólica da Igreja Ortodoxa.

A teologia dos naassenos

A doutrina naassena pegava elementos da Bíblia e os virava de cabeça para baixo, criando uma narrativa que chocava a sensibilidade cristã.

A Serpente

A crença mais distintiva dos naassenos era sua reinterpretação da serpente de Gênesis 3. Na história que eles contavam, o Deus que criou Adão e Eva e os colocou no Jardim (o Demiurgo) era um tirano ignorante que queria manter a humanidade em um estado de servidão e inconsciência.

A serpente, para eles, era uma mensageira de um reino superior, uma manifestação da sabedoria divina.

Ao tentar Adão e Eva a comerem do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, a serpente não estava os levando ao pecado, mas oferecendo a eles a gnosis, o conhecimento que os despertaria e os colocaria no caminho da libertação.

Para os naassenos, a Queda do homem não é vista como uma consequência do pecado, mas sim como o primeiro passo corajosos em direção a iluminação espiritual [4], uma forma de romper com a “imposições” feitas por Deus ao ser humano.

Adão e Eva, e a serpente do Paraíso na entrada da Catedral Notre Dame, em Paris
Adão e Eva, e a serpente do Paraíso na entrada da Catedral Notre Dame, em Paris

O primeiro homem e o Demiurgo

A visão de mundo dos naassenos era elaborada. Acima de tudo, existia um Ser Supremo, perfeito e incognoscível, a quem eles chamavam de “Primeiro Homem” ou Adamas. Este ser era andrógino, contendo em si os princípios masculino e feminino.

O mundo material, no entanto, foi criado pelo Demiurgo inferior. Na visão naassena, o Adão de Gênesis foi moldado pelo Demiurgo à imagem do “Primeiro Homem” celestial, como uma tentativa de capturar e aprisionar esse poder superior na matéria. A alma humana, portanto, era uma cópia daquele ser divino, presa em uma casca física.

A Criação de Adão de Michelangelo (1512)
A Criação de Adão de Michelangelo (1512)

Visão sobre o Jardim do Éden

Para os naassenos, a história do Jardim do Éden não era um relato literal, mas uma profunda alegoria sobre a própria constituição do ser humano.

Em seu sistema de crenças, o Éden representava o cérebro, e o Paraíso, a cabeça humana como um todo. Os quatro rios que fluíam do Éden, portanto, não eram rios geográficos, mas símbolos para os sentidos através dos quais a alma interage com o mundo:

  • O rio Pisom, descrito como o que rodeia a terra do ouro e de pedras preciosas, simbolizava os olhos, cuja dignidade e percepção das cores e da beleza testemunham o valor do que é visto.
  • O rio Giom, que circunda a terra da Etiópia, representava a audição, devido à sua natureza “labiríntica”, uma clara referência à estrutura complexa do ouvido.
  • O rio Tigre, conhecido por sua corrente “rápida” e por fluir “na direção oposta aos assírios”, era um símbolo da respiração. Para eles, o ar entra nos pulmões de forma rápida e com força, em um movimento contrário ao da expiração.
  • O rio Eufrates representava a boca, o canal através do qual o homem se expressa em oração, se nutre com o alimento e se alegra.

Jesus, o revelador do Conhecimento

Se a serpente foi a primeira a oferecer a gnosis, Jesus Cristo foi o seu revelador supremo. Para os naassenos, Jesus não era o Filho de Deus que se encarnou para morrer pelos pecados da humanidade.

Em vez disso, Ele era um mensageiro espiritual enviado do reino superior para despertar a centelha divina dentro das pessoas. Sua missão não era redimir, mas “lembrar” a humanidade de sua verdadeira origem celestial.

Por causa de sua aversão ao mundo material, muitos naassenos adotavam uma visão docetista de Cristo. “Docetismo” vem de uma palavra grega que significa “parecer”.

Eles acreditavam que Jesus não tinha um corpo físico real, mas apenas a aparência de um, pois seria impossível que um ser divino se contaminasse com a matéria impura.

Essa crença, como veremos, estava em conflito direto com o coração da fé cristã [5].

Ilustração de Jesus Cristo curando um homem leproso
Ilustração de Jesus Cristo curando um homem leproso

As três classes de humanidade

Os naassenos, como muitos gnósticos, acreditavam em um sistema espiritual elitista, dividindo a humanidade em três classes:

  1. Materiais: A grande maioria da humanidade, irremediavelmente presa ao mundo físico e sem esperança de salvação.
  2. Psíquicas: Os cristãos comuns, que viviam pela fé, mas não possuíam o conhecimento secreto. Sua salvação era incerta e inferior.
  3. Espirituais: Os eleitos, os próprios gnósticos que possuíam a gnosis. Apenas eles estavam destinados a escapar da prisão material e retornar ao reino espiritual.

Prática e o legado dos naassenos

A fé dos Naassenos se manifestava em práticas e interpretações que os diferenciavam radicalmente da Igreja Ortodoxa.

Rituais, símbolos e interpretação alegórica

Enquanto a Igreja Primitiva se reunia para a leitura das Escrituras, orações e a celebração da Ceia do Senhor, os rituais naassenos eram muito mais esotéricos.

Eles usavam hinos, cânticos e invocações místicas. Seus escritos eram repletos de simbolismo complexo, muitas vezes de natureza sexual e astrológica, que visava representar a jornada da alma.

Seu método de interpretação era radicalmente alegórico. Eles acreditavam que a verdade secreta estava escondida em todos os lugares, e que eles possuíam a chave para decodificá-la.

Assim, eles encontravam sua doutrina não apenas na Bíblia (incluindo evangelhos apócrifos como o de Tomé), mas também nos poemas de Homero e nos mistérios pagãos do deus frígio Átis.

Um de seus ensinamentos mais curiosos era que o Jardim do Éden era uma alegoria para o cérebro humano, e os quatro rios do Éden representavam os cinco sentidos.

Uma divindade serpentina com cara de leão encontrada em uma joia gnóstica
Uma divindade serpentina com cara de leão encontrada em uma joia gnóstica

A resposta da Igreja Primitiva

Os líderes da Igreja Primitiva, como Irineu de Lyon e Hipólito de Roma, viram o Gnosticismo como uma ameaça mortal ao evangelho. Eles escreveram longas refutações, condenando as ideias dos naassenos como heresia por três razões principais:

  • Negava a bondade da Criação;
  • Distorcia o pecado e a salvação;
  • Negava a pessoa de Cristo.

Negava a bondade da Criação

A ideia de que o mundo material é mau e que o Deus do Antigo Testamento é um criador ignorante era uma blasfêmia para os cristãos, que acreditam que um único Deus bom criou os céus e a terra e viu que tudo era “muito bom” (Gênesis 1:31).

Distorcia o pecado e a salvação

Ao afirmar que o problema da humanidade era a ignorância e não o pecado, e que a solução era o conhecimento secreto e não a graça de Deus, os gnósticos anulavam a mensagem central da cruz.

A salvação, para a Igreja, é um dom gratuito recebido pela fé em Cristo, não um prêmio para poucos intelectuais (Efésios 2:8-9).

Negava a pessoa de Cristo

A visão docetista de que Jesus não era verdadeiramente humano esvaziava a Encarnação e a Ressurreição de seu poder.

Se Cristo não teve um corpo real, Ele não pôde morrer uma morte real por nossos pecados, nem ressuscitar corporalmente para garantir a nossa própria ressurreição (1 João 4:2-3).

Ícone copta de Jesus Cristo alimentando uma multidão. (Igreja Católica Ortodoxa Oriental)
Ícone copta de Jesus Cristo alimentando uma multidão

Escritos sagrados dos naassenos

Assim como outros grupos gnósticos, os naassenos possuíam uma coleção de textos que consideravam sagrados e que usavam para fundamentar suas doutrinas. Suas principais fontes de conhecimento secreto (gnosis) incluíam:

  • O Fragmento Naasseno;
  • O Evangelho de Tomé;
  • O Evangelho Grego dos Egípcios;
  • O Evangelho de Filipe.

O Fragmento Naasseno

Esta não é uma obra completa que sobreviveu até hoje, mas um trecho crucial de seus ensinamentos. Ele foi preservado por seu opositor, Hipólito, que o citou extensivamente por considerá-lo um resumo de todo o sistema de crenças naasseno.

O Evangelho de Tomé

Um famoso evangelho apócrifo composto por uma coleção de “ditos secretos” de Jesus.

Era um texto popular entre os gnósticos, pois sua ênfase no conhecimento oculto e na interpretação mística se alinhava perfeitamente com sua visão de mundo.

O Evangelho Grego dos Egípcios

Outro texto não canônico que continha diálogos entre Jesus e seus discípulos sobre temas esotéricos. A obra apresentava ideias que ressoavam com as crenças gnósticas sobre a alma, a matéria e a salvação.

O Evangelho de Filipe

Os naassenos utilizavam um evangelho atribuído a Filipe. É importante notar, no entanto, que os estudiosos acreditam que esta obra é distinta e não deve ser confundida com o famoso Evangelho de Filipe que foi encontrado na biblioteca de Nag Hammadi.

Primeira página do Evangelho de Judas (página 33 do Codex Tchacos)
Primeira página do Evangelho de Judas (página 33 do Codex Tchacos)

Etimologia e significado dos Naassenos

O nome “Naassenos” tem suas raízes no hebraico. Deriva do termo nahash (נָחָשׁ), que significa “serpente” [5]. Esta designação não foi apenas uma forma de identificação externa, mas refletia uma parte intrínseca de suas crenças.

Para os membros desta seita gnóstica, a serpente era um símbolo central, representando a fonte do gnosis ou conhecimento secreto que liberaria a alma humana da ignorância.

Eles viam a serpente como um intermediário entre o mundo divino e o humano, aquele que, no Jardim do Éden, teria oferecido a sabedoria que o Demiurgo (o deus criador do Antigo Testamento, segundo eles) procurava reter.

Assim, o nome “Naassenos” encapsula a reverência do grupo pela serpente como um emblema de iluminação e verdade esotérica, contrastando fortemente com a interpretação cristã ortodoxa da serpente como figura do tentador e do engano.

Aprenda mais

[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia

[Vídeo] GNOSTICISMO: A DOUTRINA QUE DESAFIOU A RELIGIÃO TRADICIONAL – Professor Responde 97. Prof. Jonathan Matthies.

Perguntas comuns

Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo.

Quem foram os Naassenos?

Os Naassenos foram uma seita cristã gnóstica do século II d.C. O nome deles deriva da palavra hebraica naḥash, que significa “serpente”. Eles são conhecidos principalmente através dos escritos de pais da igreja, como Hipólito de Roma, que os consideravam hereges por suas doutrinas distintas.

Por que os naassenos veneravam a serpente?

Eles veneravam a serpente por reinterpretarem a história do Éden. Para os Naassenos, a serpente não foi a tentadora, mas uma mensageira do bem que ofereceu a Adão e Eva o verdadeiro conhecimento (gnose), libertando-os da ignorância imposta pelo deus criador inferior (o Demiurgo).

Fontes

[1]. Pagels, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora BestBolso, 2017.

[2]. Layton, Bentley. The Gnostic Scriptures: A New Translation with Annotations and Introductions. Doubleday, 1987.

[3]. Hipólito de Roma. Refutação de Todas as Heresias. Livro V.

[4]. Schaff, Philip. History of the Christian Church, Vol. II: Ante-Nicene Christianity. A.D. 100-325. Hendrickson Publishers, 1996.

[5]. Strong, James. Strong’s Exhaustive Concordance of the Bible. Hendrickson Publishers, 2007.

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Diego Pereira do Nascimento
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