A glutonaria é um termo teológico que descreve o consumo excessivo ou desordenado de alimentos e bebidas. Este comportamento não se refere apenas à quantidade, mas também à atitude e ao desejo desmedido em relação à comida.
Na perspectiva cristã, a glutonaria é tradicionalmente vista como um vício que afasta o indivíduo da temperança e da moderação. O conceito envolve um descontrole das paixões e uma satisfação egoísta dos apetites.
Este artigo apresenta os conceitos bíblicos e teológico deste termo presente na Bíblia.
A glutonaria na Bíblia
As Escrituras Sagradas oferecem diversas passagens que abordam a glutonaria, seja por meio de advertências diretas ou de princípios que promovem a moderação e o autocontrole.
A Bíblia não condena o prazer de comer, mas sim o excesso e a idolatria da comida. O alimento é visto como uma bênção de Deus, a ser desfrutada com gratidão e discernimento.
No Antigo Testamento
No Antigo Testamento, a glutonaria é frequentemente associada à preguiça e à falta de sabedoria. Os livros sapienciais, como Provérbios, contêm conselhos claros contra a intemperança alimentar.
A perspectiva de Provérbios
Provérbios 23:20-21 adverte: “Não ande entre os beberrões de vinho, nem entre os comilões de carne; porque o beberrão e o comilão caem em pobreza, e a sonolência vestirá de trapos o homem” [1].
Esta passagem liga diretamente a glutonaria à pobreza e à negligência. Outros textos do Antigo Testamento mostram esse pecado como um sinal de rebeldia e desobediência a Deus.
O caso do “filho rebelde e contumaz” em Deuteronômio 21:20 o descreve como um “comilão e beberrão” [2]. Isso indica que a intemperança era vista como parte de um padrão de vida pecaminoso.
A história de Esaú
A história de Esaú, que desprezou seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas, é outro exemplo.
Embora não seja diretamente chamada de glutonaria, ilustra a valorização dos apetites físicos em detrimento das bênçãos espirituais. A satisfação imediata dos desejos era um problema [3].

No Novo Testamento
O Novo Testamento também aborda a questão da glutonaria e do consumo excessivo, embora muitas vezes de maneira mais implícita, focando na temperança e no domínio próprio. Jesus Cristo foi, inclusive, acusado por seus detratores de ser um “glutão e beberrão” [4].
No entanto, essa acusação era uma tentativa de descreditar seu ministério. O foco de Jesus era a comunhão e a transformação de vidas, não a indulgência. Ele comia e bebia com pecadores para alcançá-los [5].
Perspectiva paulina
O apóstolo Paulo, em suas epístolas, frequentemente exorta os crentes à moderação e ao domínio próprio. Ele lembra aos filipenses que alguns têm “o ventre por deus” e sua “glória é para sua vergonha” [6]. Isso descreve aqueles que vivem para satisfazer seus apetites físicos.
A ênfase paulina está na santificação do corpo, que é templo do Espírito Santo. Em 1 Coríntios 6:19-20, Paulo escreve:
“Ou não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que habita em vós, o qual possuís da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?”
1 Coríntios 6:19-20
A glutonaria seria, portanto, um desrespeito a essa verdade.
Em 1 Coríntios 11:20-22, Paulo repreende a igreja de Corinto. Eles transformavam a Ceia do Senhor em um banquete egoísta, onde os ricos comiam e bebiam em excesso.
Os pobres ficavam com fome, o que desvirtuava o propósito sagrado da refeição [8].
Essa passagem demonstra que a glutonaria também pode manifestar-se como egoísmo e falta de consideração pelo próximo.

A Glutonaria como pecado capital
A glutonaria tem sido tradicionalmente classificada como um dos sete pecados capitais na teologia cristã. Esta classificação ajudou a moldar a compreensão e a combate a esse vício ao longo da história da igreja.
Origens da classificação
A lista dos “oito pensamentos maus” (logismoi) foi formulada por Evágrio do Ponto, um monge do século IV [9]. Ele identificou a “gastrimargia” (excesso no comer) como uma das principais tentações que afligem os ascetas.
Mais tarde, no século VI, São Gregório Magno revisou essa lista para sete pecados capitais. Ele incluiu a glutonaria como um dos vícios principais que geram outros pecados [10]. Sua obra “Moralia in Job” (Comentários sobre Jó) foi fundamental para a consolidação dessa lista no Ocidente.
Cinco Formas da glutonaria
Santo Tomás de Aquino, no século XIII, elaborou sobre a glutonaria em sua “Summa Theologica”. Ele a definiu como um apetite desordenado pelo comer e beber [11].
Aquino identificou cinco formas específicas deste pecado da gula, que são modos de pecar pelo excesso de comida:
- Praepropere: Comer apressadamente, sem a devida ordem.
- Laute: Comer de modo extravagante, buscando comidas muito caras ou refinadas.
- Nimis: Comer em excesso, superando o necessário para a saúde.
- Ardenter: Comer com avidez, com um desejo ardente e descontrolado.
- Studiose: Comer com excessiva preocupação com a culinária, mais pelo prazer do sabor do que pela necessidade.

Essas categorias mostram que a glutonaria não é apenas sobre a quantidade de comida. Ela abrange a atitude, o propósito e a maneira como uma pessoa se relaciona com o alimento [11].
Implicações teológicas
A glutonaria, como pecado capital, revela um desrespeito a princípios teológicos importantes. Primeiramente, ela desvaloriza o corpo como templo do Espírito Santo [7]. Um corpo maltratado pelo excesso não honra a Deus.
Em segundo lugar, a gula representa uma falha no autocontrole e na temperança, virtudes cristãs essenciais [12]. Ela indica uma submissão aos desejos carnais em vez da disciplina espiritual.
Por fim, a gula muitas vezes está ligada ao egocentrismo. A pessoa que se entrega a ela prioriza a satisfação pessoal em detrimento do cuidado com os outros [8]. Isso contradiz o amor ao próximo, um mandamento central da fé cristã.
Manifestações da glutonaria
A glutonaria se manifesta de diversas maneiras, e nem sempre é óbvia. Ela vai além de apenas “comer demais” e pode envolver a forma como se busca, prepara e consome o alimento.
Excesso de consumo
A forma mais reconhecida de glutonaria é o consumo excessivo de alimentos ou bebidas. Isso pode incluir:
- Comer demais: Consumir uma quantidade de comida que excede a necessidade do corpo para nutrição. Isso leva ao desconforto físico e, a longo prazo, a problemas de saúde [13].
- Beber demais: Ingerir bebidas em excesso, sejam alcoólicas ou não, com a intenção de satisfazer um desejo desordenado. A embriaguez é frequentemente associada à glutonaria no contexto bíblico [1].
Desejo desordenado
A glutonaria também se manifesta no desejo. Ela se relaciona com a qualidade da comida e a atitude ao comer.
- Comer com avidez: Consumir alimentos de forma impaciente e sem moderação. A pessoa pode demonstrar uma obsessão ou pressa em satisfazer o apetite.
- Buscar alimentos caros ou refinados: Uma preocupação excessiva com a sofisticação da comida. Isso acontece mesmo quando não há necessidade, revelando um luxo desnecessário e uma busca por prazer.
- Viver para comer: A comida se torna o foco central da vida, em vez de um meio para sustentar o corpo. O prazer da comida domina outras prioridades.
Esquecimento da temperança
A ausência de temperança na glutonaria também leva a atitudes negativas em relação ao próximo.
- Ignorar necessidades de outros: Consumir em excesso enquanto outros passam necessidade. Isso demonstra egoísmo e falta de compaixão [8].
- Avareza na comida: Guardar ou monopolizar alimentos. Recusar-se a compartilhar, mesmo quando há abundância, evidencia um espírito avarento.
A glutonaria e o equilíbrio cristão
O cristianismo não defende a privação ou a aversão ao alimento. Pelo contrário, promove um equilíbrio saudável entre a gratidão pela provisão de Deus e o exercício do autocontrole.
Temperança e autocontrole
A temperança é uma virtude cristã fundamental, um dos frutos do Espírito Santo [12]. Ela envolve a moderação em todas as coisas, incluindo o comer e o beber. O autocontrole é a capacidade de dominar os próprios desejos e impulsos.
A disciplina cristã incentiva a prática da temperança. Isso permite que o indivíduo seja senhor de suas paixões, e não escravo delas.
Viver com moderação honra a Deus e contribui para a saúde física e espiritual [14].
Gratidão e moderação
Comer com gratidão é uma postura bíblica [15]. Reconhecer que todo alimento vem de Deus muda a perspectiva. Isso transforma o ato de comer em um momento de louvor e não de indulgência egoísta.
A moderação em todas as coisas é um princípio recorrente nas Escrituras [16].
Isso significa desfrutar do alimento sem excessos. Não se trata de negar o prazer, mas de colocá-lo em seu devido lugar, subordinado à vontade de Deus.

Cuidado com o corpo
O corpo é um presente de Deus e deve ser cuidado com responsabilidade [7]. A glutonaria compromete a saúde física. Ela pode levar a doenças e limitar a capacidade de servir a Deus e ao próximo.
Manter o corpo saudável, por meio de uma alimentação equilibrada, é um ato de adoração. É uma forma de honrar a Deus com o próprio ser. O cuidado com o corpo reflete a dignidade da criação divina [17].
Etimologia e significado da Glutonaria
O termo “glutonaria” tem raízes latinas e um significado que denota excesso e voracidade. A compreensão de sua etimologia nos ajuda a aprofundar o significado teológico.
A palavra portuguesa “glutonaria” deriva do latim gluttus ou glutto, que significa “guloso”, “comilão”. O sufixo “-aria” indica estado ou condição [18]. Portanto, a palavra descreve a condição de ser um glutão.
No Antigo Testamento, não há um termo hebraico único que corresponda diretamente a “glutonaria” como um pecado capital. Em vez disso, a ideia é expressa por meio de diversas palavras e frases que descrevem excesso ou voracidade:
- זולל (zolel): Significa “esbanjador”, “devorador”. Usado em Provérbios 23:21 para descrever o “comilão” [19].
- סבא (saba’): Refere-se a “beber em excesso”, “embriagar-se”. Frequentemente aparece junto com “zolel” [19].
No Novo Testamento, o termo grego que se aproxima da ideia de glutonaria é:
- γαστριμαργία (gastrimargia): Literalmente significa “loucura do ventre” ou “apetite desenfreado pelo estômago”. É o termo usado por Evágrio do Ponto [9]. Embora não apareça na Bíblia grega diretamente com o sentido de pecado capital, o conceito de ter o “ventre por deus” (Filipenses 3:19) capta bem essa ideia [6].
Essas referências etimológicas e bíblicas mostram que a gula é um desvio do propósito divino para o alimento. Ela é uma submissão aos apetites em detrimento da temperança, da gratidão e do cuidado com o corpo.
Aprenda mais
[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia.
[Vídeo] Como lutar contra o pecado da gula? – Augustus Nicodemus. Perguntar Não Ofende.
Perguntas comuns
Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, deste pecado tão normalizado pelos cristãos.
O que é glutonaria segundo a Bíblia?
A Bíblia define glutonaria (ou “glutonaria”) como a falta de domínio próprio e o excesso descontrolado (Provérbios 23:20-21). É um pecado de idolatria, onde o apetite se torna um “deus” (Filipenses 3:19), demonstrando que o desejo controla a pessoa, e não Deus.
O que é glutonaria?
Glutonaria é o vício de comer ou beber em excesso, de forma habitual e descontrolada. É buscar prazer no exagero de comida, indo muito além da necessidade de nutrição, caracterizando-se pela falta de moderação.
Qual a diferença entre glutonaria e obesidade?
Glutonaria é um pecado; uma atitude de excesso e falta de autocontrole no comer. Obesidade é uma condição médica complexa; um estado físico. Embora a gula possa levar à obesidade, a obesidade pode ter muitas outras causas (genética, metabolismo, doenças) que não são pecado.
Como posso saber se sou glutão?
Avalie seus motivos. Você come por ansiedade, tédio ou emoção, em vez de fome? Você come escondido por vergonha? Você come regularmente até o ponto de desconforto físico? A glutonaria se revela quando o desejo por comida controla você.
Quais são os pecados de glutonaria?
A glutonaria manifesta-se como falta de domínio próprio (um fruto do Espírito). É o pecado da idolatria (amar o prazer da comida mais que a Deus) e da má administração do corpo, que a Bíblia chama de templo do Espírito Santo (1 Coríntios 6:19).
Fontes
[1] Provérbios 23:20-21. Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional (NVI).
[2] Deuteronômio 21:20. Bíblia Sagrada. NVI.
[3] Gênesis 25:29-34. Bíblia Sagrada. NVI.
[4] Mateus 11:19. Bíblia Sagrada. NVI.
[5] Lucas 7:34. Bíblia Sagrada. NVI.
Demais fontes
[6] Filipenses 3:19. Bíblia Sagrada. NVI.
[7] 1 Coríntios 6:19-20. Bíblia Sagrada. NVI.
[8] 1 Coríntios 11:20-22. Bíblia Sagrada. NVI.
[9] Evágrio do Ponto. On the Eight Evil Thoughts. Traduzido por John Eudes Bamberger. Cistercian Publications, 1981.
[10] Gregório Magno. Moralia in Job. Livro XXXI, Capítulo XLV. Patrologia Latina, Vol. 76.
[11] Aquino, Tomás de. Summa Theologica. II-II, Q. 148, Art. 5.
[12] Gálatas 5:22-23. Bíblia Sagrada. NVI.
[13] Provérbios 23:2. Bíblia Sagrada. NVI.
[14] 1 Coríntios 9:27. Bíblia Sagrada. NVI.
[15] 1 Timóteo 4:4-5. Bíblia Sagrada. NVI.
[16] Filipenses 4:5. Bíblia Sagrada. NVI.
[17] Romanos 12:1. Bíblia Sagrada. NVI.
[18] Houaiss, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Objetiva, 2001.
[19] Strong, James. Strong’s Exhaustive Concordance of the Bible. Hendrickson Publishers, 1990.
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