O etnocentrismo, como conceito teológico e sociológico, descreve a tendência de um indivíduo ou grupo de julgar outras culturas a partir dos valores, padrões e referenciais da própria cultura [1].
Essa perspectiva coloca o próprio grupo étnico ou cultural como o centro, o padrão a partir do qual todos os outros são avaliados, muitas vezes resultando em uma visão distorcida e preconceituosa do “outro”.
Etnocentrismo e a perspectiva bíblica
A Bíblia, desde seus primeiros livros, apresenta uma visão complexa e por vezes desafiadora sobre as relações entre diferentes povos e culturas.
Embora o foco inicial esteja na formação de Israel como povo separado para Deus, a narrativa nunca se restringe a uma visão tribal ou puramente etnocêntrica da salvação.
A eleição de Israel e a universalidade da bênção de Deus
Deus escolheu Abraão e sua descendência para formar uma nação. Essa eleição não foi um fim em si mesma, mas um meio para um propósito maior: “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gênesis 12:3).
Este versículo estabelece a universalidade do plano de Deus desde o início. A separação de Israel tinha o objetivo de preservar a verdade sobre o Deus único e verdadeiro, não de exaltar sua etnia acima de todas as outras.
Contudo, ao longo da história de Israel, houve a tentação de interpretar essa eleição de forma exclusiva e superior.
Muitos israelitas desenvolveram uma mentalidade etnocêntrica, acreditando que a salvação era intrinsecamente ligada à sua linhagem e que os gentios (não-judeus) eram inherentemente inferiores ou excluídos do favor divino.
Isso se manifesta em certas restrições e separações, que, embora tivessem um propósito teológico inicial (evitar a idolatria e a assimilação cultural perniciosa), foram frequentemente mal interpretadas como base para o desprezo cultural e racial [2].
A advertência profética contra a exclusividade
Os profetas do Antigo Testamento frequentemente confrontavam o povo de Israel quando este caía em um nacionalismo exacerbado e etnocêntrico.
Eles lembravam que a justiça de Deus se estende a todas as nações e que a eleição de Israel implicava responsabilidade, não privilégio sem serviço. O profeta Amós, por exemplo, destaca a soberania de Deus sobre diversos povos, não apenas sobre Israel (Amós 9:7).
Vocês, israelitas, não são para mim melhores do que os etíopes”, declara o SENHOR. “Eu tirei Israel do Egito, os filisteus de Caftor e os arameus de Quir.
Amós 9:7 (NVI)
Isaías e Miquéias, por sua vez, vislumbram um futuro em que todas as nações afluirão ao monte do Senhor para aprender Seus caminhos (Isaías 2:2-4; Miquéias 4:1-3), indicando uma visão de inclusão, não de exclusão cultural.
Etnocentrismo no Novo Testamento: Quebra de Barreiras
O Novo Testamento apresenta um rompimento mais explícito com as barreiras etnocêntricas, consolidando a universalidade do plano de Deus para a humanidade.
Jesus Cristo e os apóstolos confrontaram diretamente as visões limitadas sobre quem poderia fazer parte do povo de Deus.
Jesus e a superação de fronteiras
Jesus demonstrou isso ao interagir com samaritanos (João 4), romanos (Mateus 8:5-13) e outros gentios, quebrando preconceitos sociais e religiosos de sua época.
Ele ensinou que o amor ao próximo não se restringe a compatriotas ou semelhantes culturais, mas deve se estender até mesmo a inimigos (Mateus 5:43-48).
A parábola do Bom Samaritano (Lucas 10:25-37) desafia diretamente as noções de superioridade étnica e religiosa, elevando um membro de um grupo desprezado como o exemplo de verdadeira compaixão e amor.

A Igreja Primitiva e o desafio etnocêntrico
A maior parte do livro de Atos dos Apóstolos registra a luta da igreja primitiva para superar o etnocentrismo judaico.
Inicialmente, muitos judeus cristãos acreditavam que os gentios precisavam se tornar judeus culturalmente (ser circuncidados e seguir a Lei mosaica) antes de se tornarem cristãos. Este foi o cerne da controvérsia que levou ao Concílio de Jerusalém.
Pedro, um dos apóstolos mais importantes, teve que ser convencido por uma visão divina e pela intervenção do Espírito Santo de que “Deus não faz acepção de pessoas; mas que em toda nação aquele que o teme e pratica a justiça lhe é aceitável” (Atos 10:34-35).
A decisão do Concílio de Jerusalém de não impor a circuncisão e outras leis culturais judaicas aos gentios foi um marco significativo, abrindo caminho para uma igreja verdadeiramente universal e multicultural.
Paulo e a unidade em Cristo
O apóstolo Paulo foi o maior defensor da inclusão dos gentios e da superação do etnocentrismo.
Ele declarou que em Cristo não há “nem grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre; mas Cristo é tudo em todos” (Colossenses 3:11).
Essa afirmação radical desmantela as categorias sociais, étnicas e culturais que normalmente servem como base para o etnocentrismo, apontando para uma nova identidade em Cristo que transcende todas as divisões humanas.
Em Efésios 2:14-16, Paulo ensina que Cristo “derribou a parede de separação que estava no meio” entre judeus e gentios, criando um novo homem em Si mesmo.

Implicações teológicas do etnocentrismo
O etnocentrismo, quando presente na teologia e prática cristã, pode ter consequências danosas, distorcendo a natureza de Deus, a missão da igreja e a unidade do Corpo de Cristo.
Distorção da Imagem de Deus
Um entendimento etnocêntrico de Deus o reduz a um “deus tribal”, cuja preferência cultural ou étnica reflete a do grupo que o adora. Isso contrasta com a revelação bíblica de um Deus soberano sobre toda a criação e todos os povos (Miquéias 4:1).
O Deus da Bíblia é o criador de todas as raças e culturas, e Ele Se revela de formas que podem ser compreendidas em diferentes contextos culturais.
Julgar outras culturas como inferiores a partir de uma perspectiva “cristã” culturalmente específica é, na verdade, julgar a própria capacidade de Deus de Se manifestar e ser adorado em uma multiplicidade de formas.

Impacto na missiologia e evangelismo
Historicamente, o etnocentrismo tem sido um grande obstáculo na missão cristã. Em vez de apresentar o evangelho de Jesus Cristo de forma contextualizada e culturalmente relevante, muitos missionários, conscientes ou inconscientes, impuseram suas próprias culturas ocidentais (ou de outra origem) junto com a mensagem do evangelho.
Essa abordagem, muitas vezes, confundiu a “ocidentalização” ou a “culturização” com a própria conversão, gerando rejeição à mensagem ou a formação de comunidades cristãs que lutavam para discernir o que era essencialmente bíblico do que era culturalmente imposto.
A Grande Comissão de Jesus “ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15) e “fazei discípulos de todas as nações” (Mateus 28:19) implica um mandato de alcance universal que transcende barreiras culturais.
Um evangelismo eficaz exige a capacidade de comunicar a verdade de Cristo de uma forma que respeite e dialogue com a cultura local, permitindo que a mensagem crie raízes autênticas sem exigir a assimilação cultural completa ao grupo do mensageiro [3].

A quebra da unidade no Corpo de Cristo
No contexto eclesiástico, o etnocentrismo pode levar à segregação e à desvalorização de irmãos e irmãs em Cristo de diferentes origens culturais. A igreja é descrita como o Corpo de Cristo, composto por muitos membros, cada um com sua singularidade, mas unidos sob a cabeça, que é Cristo (1 Coríntios 12).
O etnocentrismo impede a plena manifestação dessa unidade e diversidade, marginalizando grupos culturais e suprimindo a riqueza de dons e perspectivas que a pluralidade cultural traz ao louvor e serviço a Deus.
Etnocentrismo na igreja contemporânea
Para combater o etnocentrismo, é necessário um esforço intencional de reflexão teológica e prática eclesiástica que priorize a humildade, o diálogo e a valorização da diversidade.
Reconhecendo a soberania de Deus sobre as culturas
É fundamental reconhecer que todas as culturas, em maior ou menor grau, refletem a imagem de Deus, mesmo que também estejam manchadas pelo pecado. Deus
Se manifesta em diferentes contextos e permite que cada cultura desenvolva formas próprias de expressar sua adoração e compreensão do mundo, desde que não violem princípios bíblicos claros.
A humildade de não se considerar culturalmente superior é o primeiro passo para o verdadeiro engajamento intercultural.

Educação teológica e intercultural
Semelhante à importância da oração na vida cristã, uma educação teológica que inclua uma perspectiva intercultural é muito importante para os líderes e membros da igreja.
Isso implica estudar a Bíblia com lentes que reconheçam sua universalidade e as diversas formas como seus princípios podem ser aplicados em diferentes contextos. O estudo da história da igreja e da missão também pode revelar os erros e acertos do passado em relação ao etnocentrismo.
Promovendo a diversidade e a unidade
A igreja precisa promover ativamente a diversidade em sua liderança, adoração e programas. Isso significa criar espaços onde diferentes expressões culturais do cristianismo possam florescer, onde a música, a arte, as práticas de adoração e as formas de discipulado reflitam a riqueza da comunidade global de crentes.
A verdadeira unidade em Cristo não significa uniformidade cultural, mas a celebração da diversidade dentro de um propósito comum de glorificar a Deus [4].

Etimologia e significado do etnocentrismo
O termo “etnocentrismo” é composto por duas partes de origem grega: “ethnos” (ἔθνος) e “kentron” (κέντρον).
Ethnos (ἔθνος)
Significa “povo”, “nação”, “raça” ou “grupo cultural”. No contexto grego antigo, referia-se a um grupo de pessoas unidas por laços de ancestralidade comum, língua e costumes. Na Bíblia, “ethnos” é frequentemente traduzido como “gentios” ou “nações”, em contraste com o povo de Israel.
Kentron (κέντρον)
Significa “centro”. A palavra é usada para indicar o ponto central ao redor do qual algo gira ou em relação ao qual tudo é medido.
Juntas, essas raízes formam o conceito de “etnocentrismo”, que significa, literalmente, “o povo no centro”. O termo foi cunhado pelo sociólogo William G. Sumner no início do século XX. Sumner o definiu como “a visão de que o grupo de cada um é o centro de tudo, e todos os outros são escalados e classificados em referência a ele” [5].
Em sua essência, o etnocentrismo descreve uma predisposição cultural em que as normas, valores e costumes do próprio grupo são considerados universais, superiores e o padrão para julgar as outras culturas, muitas vezes com um sentimento de orgulho pelo próprio grupo e desprezo ou preconceito em relação aos outros.
Aprenda mais
[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia.
[Vídeo] O que é ETNOCENTRISMO? Estudo Com Você.
Perguntas comuns
Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo teológico pouco conhecido.
Quais os tipos de etnocentrismo existentes?
Os tipos incluem o etnocentrismo racial, que exalta uma raça; o linguístico, que considera uma língua superior às outras; e o religioso, que impõe uma crença como a única válida. Existem também o xenocentrismo (valorização do estrangeiro) e o etnocentrismo cultural.
O que é etnocentrismo na Bíblia?
É a visão presente em certas passagens onde o povo de Israel é considerado o “povo escolhido” por Deus, colocando sua cultura, leis e práticas religiosas como superiores ou como o padrão divino em relação a outras nações (gentios).
O que significa etnocentrismo?
Significa julgar outras culturas e sociedades a partir dos valores, crenças e normas do próprio grupo de origem. É a tendência de ver a própria cultura como o centro e o padrão correto para avaliar as demais.
O que é etnocentrismo?
É a visão de mundo de quem considera seu próprio grupo étnico e cultural como o mais importante. Manifesta-se na avaliação de outras culturas com base nos padrões da sua, frequentemente levando a preconceito e discriminação.
Como o etnocentrismo pode ser definido?
Pode ser definido como uma atitude ou crença na qual um indivíduo enxerga o mundo através das lentes de sua própria cultura, considerando-a como o modelo de referência e superior às demais.
Fontes
[1] Shrestha, S. S. (2018). Ethnocentrism. In SAGE Encyclopedia of Psychology and Religion (2nd ed., pp. 605-606). SAGE Publications.
[2] Kallas, A. A. (2007). Etnocentrismo: o maior problema da comunicação intercultural. Reflexão, 32(1), 101-118.
[3] Hiebert, P. G. (1985). Cultural Anthropology. Baker Academic.
[4] Van Engen, C. (1996). Mission on the Way: Issues in Mission Theology. Baker Academic.
[5] Sumner, W. G. (1906). Folkways: A Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs, Mores, and Morals. Ginn and Company.
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