Etnocentrismo Religioso

Etnocentrismo é julgar outras culturas pela sua. A Bíblia o combate, pregando um Deus universal e a união entre os povos.

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12 minutos de leitura

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O etnocentrismo, como conceito teológico e sociológico, descreve a tendência de um indivíduo ou grupo de julgar outras culturas a partir dos valores, padrões e referenciais da própria cultura [1].

Essa perspectiva coloca o próprio grupo étnico ou cultural como o centro, o padrão a partir do qual todos os outros são avaliados, muitas vezes resultando em uma visão distorcida e preconceituosa do “outro”.


Etnocentrismo e a perspectiva bíblica

A Bíblia, desde seus primeiros livros, apresenta uma visão complexa e por vezes desafiadora sobre as relações entre diferentes povos e culturas.

Embora o foco inicial esteja na formação de Israel como povo separado para Deus, a narrativa nunca se restringe a uma visão tribal ou puramente etnocêntrica da salvação.

A eleição de Israel e a universalidade da bênção de Deus

Deus escolheu Abraão e sua descendência para formar uma nação. Essa eleição não foi um fim em si mesma, mas um meio para um propósito maior: “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gênesis 12:3).

Este versículo estabelece a universalidade do plano de Deus desde o início. A separação de Israel tinha o objetivo de preservar a verdade sobre o Deus único e verdadeiro, não de exaltar sua etnia acima de todas as outras.

Contudo, ao longo da história de Israel, houve a tentação de interpretar essa eleição de forma exclusiva e superior.

Muitos israelitas desenvolveram uma mentalidade etnocêntrica, acreditando que a salvação era intrinsecamente ligada à sua linhagem e que os gentios (não-judeus) eram inherentemente inferiores ou excluídos do favor divino.

Isso se manifesta em certas restrições e separações, que, embora tivessem um propósito teológico inicial (evitar a idolatria e a assimilação cultural perniciosa), foram frequentemente mal interpretadas como base para o desprezo cultural e racial [2].

Mapa das 12 tribos de Israel, após a conquista da Terra Prometida
Mapa das 12 tribos de Israel, após a conquista da Terra Prometida

A advertência profética contra a exclusividade

Os profetas do Antigo Testamento frequentemente confrontavam o povo de Israel quando este caía em um nacionalismo exacerbado e etnocêntrico.

Eles lembravam que a justiça de Deus se estende a todas as nações e que a eleição de Israel implicava responsabilidade, não privilégio sem serviço. O profeta Amós, por exemplo, destaca a soberania de Deus sobre diversos povos, não apenas sobre Israel (Amós 9:7).

Vocês, israelitas, não são para mim melhores do que os etíopes”, declara o SENHOR. “Eu tirei Israel do Egito, os filisteus de Caftor e os arameus de Quir.

Amós 9:7 (NVI)

Isaías e Miquéias, por sua vez, vislumbram um futuro em que todas as nações afluirão ao monte do Senhor para aprender Seus caminhos (Isaías 2:2-4; Miquéias 4:1-3), indicando uma visão de inclusão, não de exclusão cultural.


Etnocentrismo no Novo Testamento: Quebra de Barreiras

O Novo Testamento apresenta um rompimento mais explícito com as barreiras etnocêntricas, consolidando a universalidade do plano de Deus para a humanidade.

Jesus Cristo e os apóstolos confrontaram diretamente as visões limitadas sobre quem poderia fazer parte do povo de Deus.

Jesus e a superação de fronteiras

Jesus demonstrou isso ao interagir com samaritanos (João 4), romanos (Mateus 8:5-13) e outros gentios, quebrando preconceitos sociais e religiosos de sua época.

Ele ensinou que o amor ao próximo não se restringe a compatriotas ou semelhantes culturais, mas deve se estender até mesmo a inimigos (Mateus 5:43-48).

A parábola do Bom Samaritano (Lucas 10:25-37) desafia diretamente as noções de superioridade étnica e religiosa, elevando um membro de um grupo desprezado como o exemplo de verdadeira compaixão e amor.

Ilustração de Jesus conversando com a mulher samaritana
Ilustração de Jesus conversando com a mulher samaritana

A Igreja Primitiva e o desafio etnocêntrico

A maior parte do livro de Atos dos Apóstolos registra a luta da igreja primitiva para superar o etnocentrismo judaico.

Inicialmente, muitos judeus cristãos acreditavam que os gentios precisavam se tornar judeus culturalmente (ser circuncidados e seguir a Lei mosaica) antes de se tornarem cristãos. Este foi o cerne da controvérsia que levou ao Concílio de Jerusalém.

Pedro, um dos apóstolos mais importantes, teve que ser convencido por uma visão divina e pela intervenção do Espírito Santo de que “Deus não faz acepção de pessoas; mas que em toda nação aquele que o teme e pratica a justiça lhe é aceitável” (Atos 10:34-35).

A decisão do Concílio de Jerusalém de não impor a circuncisão e outras leis culturais judaicas aos gentios foi um marco significativo, abrindo caminho para uma igreja verdadeiramente universal e multicultural.

Paulo e a unidade em Cristo

O apóstolo Paulo foi o maior defensor da inclusão dos gentios e da superação do etnocentrismo.

Ele declarou que em Cristo não há “nem grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre; mas Cristo é tudo em todos” (Colossenses 3:11).

Essa afirmação radical desmantela as categorias sociais, étnicas e culturais que normalmente servem como base para o etnocentrismo, apontando para uma nova identidade em Cristo que transcende todas as divisões humanas.

Em Efésios 2:14-16, Paulo ensina que Cristo “derribou a parede de separação que estava no meio” entre judeus e gentios, criando um novo homem em Si mesmo.

Apóstolo Paulo em Atenas proferindo o sermão no Areópago, retratada por Rafael em 1515
Apóstolo Paulo em Atenas proferindo o sermão no Areópago, retratada por Rafael em 1515

Implicações teológicas do etnocentrismo

O etnocentrismo, quando presente na teologia e prática cristã, pode ter consequências danosas, distorcendo a natureza de Deus, a missão da igreja e a unidade do Corpo de Cristo.

Distorção da Imagem de Deus

Um entendimento etnocêntrico de Deus o reduz a um “deus tribal”, cuja preferência cultural ou étnica reflete a do grupo que o adora. Isso contrasta com a revelação bíblica de um Deus soberano sobre toda a criação e todos os povos (Miquéias 4:1).

O Deus da Bíblia é o criador de todas as raças e culturas, e Ele Se revela de formas que podem ser compreendidas em diferentes contextos culturais.

Julgar outras culturas como inferiores a partir de uma perspectiva “cristã” culturalmente específica é, na verdade, julgar a própria capacidade de Deus de Se manifestar e ser adorado em uma multiplicidade de formas.

Imagem de Deus

Impacto na missiologia e evangelismo

Historicamente, o etnocentrismo tem sido um grande obstáculo na missão cristã. Em vez de apresentar o evangelho de Jesus Cristo de forma contextualizada e culturalmente relevante, muitos missionários, conscientes ou inconscientes, impuseram suas próprias culturas ocidentais (ou de outra origem) junto com a mensagem do evangelho.

Essa abordagem, muitas vezes, confundiu a “ocidentalização” ou a “culturização” com a própria conversão, gerando rejeição à mensagem ou a formação de comunidades cristãs que lutavam para discernir o que era essencialmente bíblico do que era culturalmente imposto.

A Grande Comissão de Jesus “ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15) e “fazei discípulos de todas as nações” (Mateus 28:19) implica um mandato de alcance universal que transcende barreiras culturais.

Um evangelismo eficaz exige a capacidade de comunicar a verdade de Cristo de uma forma que respeite e dialogue com a cultura local, permitindo que a mensagem crie raízes autênticas sem exigir a assimilação cultural completa ao grupo do mensageiro [3].

Ilustração de missão cristã. Homem ensinando a Bíblia para outro
Ilustração de missão cristã. Homem ensinando a Bíblia para outro

A quebra da unidade no Corpo de Cristo

No contexto eclesiástico, o etnocentrismo pode levar à segregação e à desvalorização de irmãos e irmãs em Cristo de diferentes origens culturais. A igreja é descrita como o Corpo de Cristo, composto por muitos membros, cada um com sua singularidade, mas unidos sob a cabeça, que é Cristo (1 Coríntios 12).

O etnocentrismo impede a plena manifestação dessa unidade e diversidade, marginalizando grupos culturais e suprimindo a riqueza de dons e perspectivas que a pluralidade cultural traz ao louvor e serviço a Deus.


Etnocentrismo na igreja contemporânea

Para combater o etnocentrismo, é necessário um esforço intencional de reflexão teológica e prática eclesiástica que priorize a humildade, o diálogo e a valorização da diversidade.

Reconhecendo a soberania de Deus sobre as culturas

É fundamental reconhecer que todas as culturas, em maior ou menor grau, refletem a imagem de Deus, mesmo que também estejam manchadas pelo pecado. Deus

Se manifesta em diferentes contextos e permite que cada cultura desenvolva formas próprias de expressar sua adoração e compreensão do mundo, desde que não violem princípios bíblicos claros.

A humildade de não se considerar culturalmente superior é o primeiro passo para o verdadeiro engajamento intercultural.

Ilustração de Jonas durante conversa com Deus após pregar aos moradores da cidade de Nínive. Etnocentrismo religioso
Ilustração de Jonas durante conversa com Deus após pregar aos moradores da cidade de Nínive

Educação teológica e intercultural

Semelhante à importância da oração na vida cristã, uma educação teológica que inclua uma perspectiva intercultural é muito importante para os líderes e membros da igreja.

Isso implica estudar a Bíblia com lentes que reconheçam sua universalidade e as diversas formas como seus princípios podem ser aplicados em diferentes contextos. O estudo da história da igreja e da missão também pode revelar os erros e acertos do passado em relação ao etnocentrismo.

Promovendo a diversidade e a unidade

A igreja precisa promover ativamente a diversidade em sua liderança, adoração e programas. Isso significa criar espaços onde diferentes expressões culturais do cristianismo possam florescer, onde a música, a arte, as práticas de adoração e as formas de discipulado reflitam a riqueza da comunidade global de crentes.

A verdadeira unidade em Cristo não significa uniformidade cultural, mas a celebração da diversidade dentro de um propósito comum de glorificar a Deus [4].

Ilustração que representa a desigualdade social encontrada nas cidades do Brasil
Ilustração que representa a desigualdade social encontrada nas cidades do Brasil

Etimologia e significado do etnocentrismo

O termo “etnocentrismo” é composto por duas partes de origem grega: “ethnos” (ἔθνος) e “kentron” (κέντρον).

Ethnos (ἔθνος)

Significa “povo”, “nação”, “raça” ou “grupo cultural”. No contexto grego antigo, referia-se a um grupo de pessoas unidas por laços de ancestralidade comum, língua e costumes. Na Bíblia, “ethnos” é frequentemente traduzido como “gentios” ou “nações”, em contraste com o povo de Israel.

Kentron (κέντρον)

Significa “centro”. A palavra é usada para indicar o ponto central ao redor do qual algo gira ou em relação ao qual tudo é medido.

Juntas, essas raízes formam o conceito de “etnocentrismo”, que significa, literalmente, “o povo no centro”. O termo foi cunhado pelo sociólogo William G. Sumner no início do século XX. Sumner o definiu como “a visão de que o grupo de cada um é o centro de tudo, e todos os outros são escalados e classificados em referência a ele” [5].

Em sua essência, o etnocentrismo descreve uma predisposição cultural em que as normas, valores e costumes do próprio grupo são considerados universais, superiores e o padrão para julgar as outras culturas, muitas vezes com um sentimento de orgulho pelo próprio grupo e desprezo ou preconceito em relação aos outros.


Aprenda mais

[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia.

[Vídeo] O que é ETNOCENTRISMO? Estudo Com Você.


Perguntas comuns

Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo teológico pouco conhecido.

Quais os tipos de etnocentrismo existentes?

Os tipos incluem o etnocentrismo racial, que exalta uma raça; o linguístico, que considera uma língua superior às outras; e o religioso, que impõe uma crença como a única válida. Existem também o xenocentrismo (valorização do estrangeiro) e o etnocentrismo cultural.

O que é etnocentrismo na Bíblia?

É a visão presente em certas passagens onde o povo de Israel é considerado o “povo escolhido” por Deus, colocando sua cultura, leis e práticas religiosas como superiores ou como o padrão divino em relação a outras nações (gentios).

O que significa etnocentrismo?

Significa julgar outras culturas e sociedades a partir dos valores, crenças e normas do próprio grupo de origem. É a tendência de ver a própria cultura como o centro e o padrão correto para avaliar as demais.

O que é etnocentrismo?

É a visão de mundo de quem considera seu próprio grupo étnico e cultural como o mais importante. Manifesta-se na avaliação de outras culturas com base nos padrões da sua, frequentemente levando a preconceito e discriminação.

Como o etnocentrismo pode ser definido?

Pode ser definido como uma atitude ou crença na qual um indivíduo enxerga o mundo através das lentes de sua própria cultura, considerando-a como o modelo de referência e superior às demais.


Fontes

[1] Shrestha, S. S. (2018). Ethnocentrism. In SAGE Encyclopedia of Psychology and Religion (2nd ed., pp. 605-606). SAGE Publications.

[2] Kallas, A. A. (2007). Etnocentrismo: o maior problema da comunicação intercultural. Reflexão, 32(1), 101-118.

[3] Hiebert, P. G. (1985). Cultural Anthropology. Baker Academic.

[4] Van Engen, C. (1996). Mission on the Way: Issues in Mission Theology. Baker Academic.

[5] Sumner, W. G. (1906). Folkways: A Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs, Mores, and Morals. Ginn and Company.

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Diego Pereira do Nascimento
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