O Setianismo foi uma seita gnóstica muito influente nos séculos II e III d.C. Este movimento, conhecido por sua complexa cosmologia e soteriologia distintas, divergia significativamente das correntes principais do cristianismo primitivo [1].
Eles desenvolveram uma teologia rica e sofisticada, que misturava elementos do platonismo médio, do judaísmo helenístico e do cristianismo, culminando em uma visão particular sobre a origem do cosmos e a salvação da alma [2].
Neste artigo apresentamos a história desta seita gnóstica, seus principais pensamentos e influência na teologia.
História do setianismo
A corrente teológica dos Setianos floresceu principalmente a partir do século II d.C., desenvolvendo-se em um cenário de intensa diversidade religiosa.
As suas raízes remontam a um sincretismo que incorporava ideias do judaísmo helenístico, filosofia platônica e conceitos cristãos [3]. Este grupo não se via como parte da Igreja cristã emergente, mas sim como detentores de um conhecimento superior, a “gnosis”, essencial para a salvação.
A conexão com Sete
O nome “Setianos” deriva de Sete, o terceiro filho de Adão e Eva, conforme Gênesis 4:25. Para os Setianos, Sete não era apenas uma figura histórica, mas um revelador primordial da verdade divina [4].
Eles acreditavam que Sete era o ancestral de uma linhagem especial de seres humanos, portadores de uma centelha divina, em contraste com a humanidade comum descendente de Caim e Abel.
Os Setianos viam Sete como o primeiro a receber a revelação de Deus, um mensageiro celestial ou até mesmo uma manifestação do próprio Cristo [5].
Essa veneração a Sete diferenciava-os de outros grupos gnósticos, posicionando-o como um elo vital na corrente da gnosis que conduzia à salvação.

Cosmologia setiana
A cosmologia Setiana é notavelmente complexa e oferece um contraste marcante com a doutrina cristã bíblica. Em sua visão, o universo não foi criado pelo Deus supremo, mas por uma entidade inferior e ignorante.
O Deus Verdadeiro e o Pleroma
No centro da teologia Setiana está a ideia de um Deus transcendental e incognoscível, frequentemente chamado de “Deus Desconhecido” ou “Abismo”. Este Ser supremo é perfeito e está além de toda compreensão e descrição humana [6]. Dele emanam uma série de entidades divinas, os éons, que habitam o “Pleroma”, o reino da plenitude divina.
Dentro do Pleroma, uma das primeiras emanações é Barbelo, frequentemente descrita como a primeira Pensamento ou Protenoia do Deus Desconhecido. Barbelo, por sua vez, dá origem a outros éons, formando uma hierarquia complexa de seres divinos que representam aspectos do Deus supremo [7].
O Demiurgo e a Criação imperfeita
A Criação do mundo material, para os Setianos, não é obra do Deus verdadeiro. Em vez disso, é atribuída a uma entidade inferior, o Demiurgo, frequentemente identificado como Yaldabaoth [8].
Este Demiurgo é retratado como ignorante e arrogante, acreditando ser o único Deus. Ele é descrito como o Deus do Antigo Testamento, que proclamou: “Eu sou Deus e não há outro fora de mim” (cf. Isaías 45:5).
Os Setianos interpretavam as escrituras hebraicas de forma alegórica, vendo o Demiurgo como um ser falho que, em sua ignorância, criou um mundo material imperfeito e corrupto [9].
Isso contrasta com a visão bíblica, que afirma que Deus criou todas as coisas boas e perfeitas (Gênesis 1:31). Para eles, o mundo material e o corpo físico são uma prisão para a centelha divina.

Antropologia e soteriologia setiana
A compreensão setiana sobre a natureza humana e a salvação também diverge fundamentalmente da teologia cristã. Eles acreditavam que a humanidade possuía uma centelha divina aprisionada na matéria.
A centelha de Deus e a Queda
Para os Setianos, certos indivíduos carregam uma “centelha divina” do Deus supremo dentro de si, aprisionada no corpo material criado pelo Demiurgo [10].
A história de Adão e Eva é reinterpretada, com a serpente do Éden sendo vista como um agente do conhecimento que oferece a gnosis, em vez de um tentador para o pecado.
A expulsão do Éden é entendida como o aprisionamento da humanidade na matéria.
A verdadeira “queda” para os Setianos é o esquecimento da origem divina da alma e o apego ao mundo material [11].
A salvação, portanto, não vem de um sacrifício por pecados, mas sim do despertar para a própria natureza espiritual.

A busca pela gnosis
A soteriologia Setiana é centrada na obtenção da “gnosis” (conhecimento). Este não é um conhecimento intelectual comum, mas uma revelação mística e intuitiva da verdadeira natureza de Deus, do cosmos e da própria alma [12]. A gnosis liberta a centelha divina da prisão material, permitindo que ela retorne ao Pleroma.
Os Setianos valorizavam reveladores divinos, como Sete e Cristo, que vinham ao mundo para transmitir esse conhecimento secreto [13].
Jesus, para eles, não era o Filho de Deus encarnado, mas um éon ou um espírito que desceu para instruir a humanidade, sem realmente assumir um corpo físico (doutrina conhecida como docetismo). Sua morte na cruz era, portanto, uma ilusão, pois um ser espiritual não poderia sofrer [14].
Textos setianos
Grande parte do nosso conhecimento sobre os Setianos vem de textos antigos que foram descobertos em contextos arqueológicos e de referências de Padres da Igreja.
Biblioteca de Nag Hammadi
A descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, em 1945, no Egito, foi crucial para a compreensão dos Setianos [15]. Esta coleção de treze códices coptas continha numerosos textos gnósticos, muitos dos quais são identificados como Setianos. Entre eles estão:
- O Apócrifo de João: Descreve a criação do mundo material pelo Demiurgo e a origem da centelha divina.
- O Evangelho dos Egípcios (copta): Apresenta hinos e revelações sobre Sete e a linhagem dos gnósticos [16].
- Três Estelas de Sete: Orações e hinos que glorificam Sete como o revelador da gnosis.
- Zostriano e Alógenes: Textos apocalípticos que descrevem viagens celestiais e revelações complexas sobre o Pleroma.
Esses textos fornecem uma visão direta das crenças, rituais e cosmologia setiana, permitindo aos estudiosos reconstruir sua teologia [17].
Referências dos Padres da Igreja
Antes da descoberta de Nag Hammadi, as informações sobre os Setianos eram principalmente derivadas dos escritos dos Padres da Igreja, que os consideravam hereges. Autores como Irineu de Lyon (em Adversus Haereses),
Hipólito de Roma (em Refutação de Todas as Heresias) e Epifânio de Salamina (em Panarion) descreveram e refutaram as crenças setianas [18]. Embora suas descrições fossem muitas vezes polêmicas, elas forneceram os primeiros vislumbres desse grupo.

Declínio do setianismo
A influência dos Setianos começou a diminuir no século IV d.C. O cristianismo niceno, com sua doutrina trinitária e cristologia consolidada, ganhava cada vez mais força [19].
A Igreja cristã, então majoritária, condenava ativamente as doutrinas gnósticas como heréticas, o que levou à perseguição e marginalização dos grupos gnósticos.
Além disso, a complexidade de sua teologia e a natureza esotérica de sua gnosis podem ter dificultado a adesão em massa, limitando seu apelo a círculos mais restritos [20].
Muitos elementos de sua doutrina foram absorvidos ou modificados por outras correntes gnósticas, mas a identidade Setiana como um movimento distinto gradualmente desapareceu.

Significado de setianismo
O termo Setianos é derivado diretamente do nome hebraico Sete (em hebraico: שֵׁת, Sheth), que é o terceiro filho de Adão e Eva, mencionado em Gênesis 4:25-26 [21]. Na narrativa bíblica, Sete é visto como o substituto de Abel e o ancestral de uma nova linhagem através da qual a adoração a Deus é mantida.
Para os Setianos, o nome “Sete” carregava um significado profundo e teológico. Eles se consideravam os descendentes espirituais, ou a “semente” (do hebraico “sheth” pode estar relacionado a “fundamento” ou “substituição”), de Sete [22].
Assim, o termo “Setianos” identifica aqueles que se viam como herdeiros de uma revelação especial, dada a Sete e transmitida através de sua linhagem. Eles eram, portanto, “os seguidores de Sete” ou “aqueles que pertencem à linhagem de Sete”, o revelador primordial da gnosis divina.
Aprenda mais
[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia.
[Vídeo] Demiurgo – O Falso Criador. Maria Pereda, PhD.
[Vídeo] GNOSTICISMO: A DOUTRINA QUE DESAFIOU A RELIGIÃO TRADICIONAL – Professor Responde 97. Prof. Jonathan Matthies.
Perguntas comuns
Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca desta seita presente nos primeiros anos da igreja.
O que foi o setianismo?
O setianismo foi uma corrente gnóstica proeminente dos primeiros séculos cristãos. Seus seguidores veneravam Sete, o terceiro filho de Adão, como uma figura salvadora ou a encarnação de uma entidade celestial. Eles possuíam uma cosmologia complexa, destacando um dualismo entre o Deus supremo e o Demiurgo, o criador do mundo material.
O que levou ao fim do setianismo?
O setianismo, como outras vertentes gnósticas, foi gradualmente suplantado pela ascensão da Igreja Cristã ortodoxa, que o considerava herético. A perseguição e a pressão teológica levaram ao declínio e desaparecimento dessas comunidades. A falta de registros e a natureza esotérica de suas crenças também contribuíram para sua eventual extinção.
O que pregava o setianismo?
O setianismo pregava um dualismo radical: um Deus supremo e bom no reino espiritual (Pleroma) e um Demiurgo ignorante e maligno que criou o mundo material. Eles acreditavam que a salvação vinha do conhecimento (gnosis) da verdadeira origem divina das almas, aprisionadas nos corpos e no cosmos do Demiurgo, buscando a libertação espiritual.
Fontes
[1] Ehrman, Bart D. Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew. Oxford University Press, 2003, p. 119-120.
[2] King, Karen L. What is Gnosticism?. Harvard University Press, 2003, p. 89-91.
[3] Turner, John D. “Sethian Gnosticism and the Platonic Tradition.” In Gnosticism and Platonism: The Philosophy of Early Heresy. Bloomsbury T&T Clark, 2013, p. 1-2.
[4] Wisse, Frederik. “The Nag Hammadi Library and the Heresiologists.” Vigiliae Christianae, vol. 25, no. 3, 1971, p. 207.
Demais fontes
[5] Layton, Bentley. The Gnostic Scriptures: A New Translation with Annotations and Introductions. Doubleday, 1987, p. 182.
[6] Pagels, Elaine. The Gnostic Gospels. Vintage Books, 1979, p. 30.
[7] Williams, Michael Allen. Rethinking Gnosticism: An Argument for Dismantling a Dubious Category. Princeton University Press, 1996, p. 129.
[8] Layton, Bentley. The Gnostic Scriptures: A New Translation with Annotations and Introductions. Doubleday, 1987, p. 235.
[9] Irineu de Lyon. Adversus Haereses, Livro I, Capítulo 29.
[10] Turner, John D. “Sethian Gnosticism.” In The Encyclopedia of Religion, vol. 12, edited by Lindsay Jones, Macmillan Reference USA, 2005, p. 8235.
[11] Williams, Michael Allen. Rethinking Gnosticism: An Argument for Dismantling a Dubious Category. Princeton University Press, 1996, p. 156.
[12] Pagels, Elaine. The Gnostic Gospels. Vintage Books, 1979, p. 125.
[13] King, Karen L. What is Gnosticism?. Harvard University Press, 2003, p. 121.
[14] Irineu de Lyon. Adversus Haereses, Livro I, Capítulo 24.
[15] Robinson, James M. (ed.). The Nag Hammadi Library in English. HarperOne, 1990, p. 1-2.
[16] Hedrick, Charles W. “The Gospel of the Egyptians (Coptic).” In The Nag Hammadi Library in English, ed. James M. Robinson, HarperOne, 1990, p. 209-210.
[17] King, Karen L. What is Gnosticism?. Harvard University Press, 2003, p. 13-14.
[18] Wisse, Frederik. “The Nag Hammadi Library and the Heresiologists.” Vigiliae Christianae, vol. 25, no. 3, 1971, p. 205-207.
[19] Ehrman, Bart D. Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew. Oxford University Press, 2003, p. 175-176.
[20] King, Karen L. What is Gnosticism?. Harvard University Press, 2003, p. 195.
[21] Gênesis 4:25-26 (NVI).
[22] Turner, John D. “Sethian Gnosticism.” In The Encyclopedia of Religion, vol. 12, edited by Lindsay Jones, Macmillan Reference USA, 2005, p. 8234.
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