Demiurgo

Na doutrina gnóstica, o Demiurgo é considerado a o criador imperfeito do Universo, um deus falho. Considerado o deus apresentado no AT.

·

15 minutos de leitura

·

·

O conceito de Demiurgo é uma ideia importante e polêmica na história, usado para descrever um suposto deus responsável pela Criação do universo material. A ideia surgiu na filosofia grega, mas seu significado mudou completamente quando foi adotada pelo gnosticismo.

Este conceito é um dos centrais no gnosticismo e nas seitas derivadas dele. Neste artigo apresentamos a história e todas as implicações teológicas deste termo na história e na Teologia.

O Demiurgo na filosofia de Platão

A primeira grande apresentação do Demiurgo na filosofia vem do pensador grego Platão. Em seu famoso diálogo “Timeu”, ele descreve uma visão detalhada da criação do universo, onde o Demiurgo é a figura principal. Ele é apresentado como um artesão divino, um construtor que traz ordem ao mundo.

A natureza e o objetivo do Demiurgo de Platão são a chave para entender sua visão sobre o mundo. Ele não é uma figura má ou sem rumo, mas a representação da razão, da bondade e de um propósito divino na criação.

Origem do conceito “Timeu”

No “Timeu”, Platão explica que o Demiurgo é um artífice que molda o universo a partir de uma matéria que já existia e estava em desordem [1].

Ele não cria o mundo do nada (ex nihilo), o que é uma diferença importante em relação à doutrina cristã da criação. Sua função é organizar e dar forma ao que já existe.

Ele trabalha seguindo modelos perfeitos e eternos, conhecidos como as Ideias ou Formas, que existem em um mundo ideal. O universo que podemos ver e tocar é, portanto, uma cópia ou uma imagem desse mundo perfeito [2].

Ilustração do Demiurgo, um deus no gnosticismo
Ilustração do Demiurgo, um deus no gnosticismo

Motivação do Demiurgo

Platão afirma que o Demiurgo é totalmente bom e livre de inveja. Por ser bom, ele deseja que todas as coisas sejam o mais parecidas com ele. Seu principal objetivo é trazer ordem, beleza e sentido a um estado inicial de caos [1].

Seu método é como o de um grande arquiteto. Ele olha para as Formas eternas como um construtor olha para uma planta e molda a matéria desordenada para refletir essa perfeição.

O resultado é um “cosmos”, uma palavra grega que significa “ordem”. Quem acredita no Demiurgo?

A natureza da criação platônica

Para Platão, o trabalho do Demiurgo é bom e belo. O universo físico, mesmo sendo uma cópia e, por isso, imperfeito em comparação com o mundo das Ideias, é a melhor criação possível. Ele é descrito como um “deus vivo”, com alma e inteligência [2].

A visão de Platão considera o mundo material uma prova da bondade e da razão de Deus. A existência do mal ou da desordem não é culpa do criador, mas da dificuldade de trabalhar com a matéria que já existia e que ele precisou organizar.

Busto de Platão. Cópia em mármore do busto de Platão feito por Silanião, 370 AC
Busto de Platão. Cópia em mármore do busto de Platão feito por Silanião, 370 AC

Mudança Gnóstica: O Demiurgo como um Criador Falho

O gnosticismo, um conjunto de movimentos religiosos que surgiram nos primeiros séculos do cristianismo, usou o termo Demiurgo, mas mudou completamente seu significado. Para os gnósticos, a existência do mal e do sofrimento no mundo era a prova de que seu criador não poderia ser o Deus verdadeiro e bom.

Essa nova interpretação transformou o bom artesão de Platão em uma figura falha, ignorante ou até mesmo má. Isso ofereceu uma resposta complexa para o problema da existência do mal.

Gnosticismo e a origem do mal

O pensamento gnóstico é conhecido por sua forte divisão, ou dualismo. Ele separa de forma radical o Deus supremo, que é distante, bom e espiritual, do mundo material, que é visto como uma prisão ou um erro [3].

Nesse sistema, o Demiurgo é um deus menor, responsável pela criação deste universo imperfeito.

Ele não é o Deus verdadeiro, mas uma criação inferior que, por ignorância ou maldade, criou o mundo físico e prendeu as almas humanas dentro de corpos materiais.

Ilustração de um grupo de pessoas adorando uma serpente (Gnosticismo)
Ilustração de um grupo de pessoas adorando uma serpente (Gnosticismo)

Yaldabaoth

O nome mais conhecido do Demiurgo gnóstico é Yaldabaoth. Ele aparece em muitos textos gnósticos, como o “Apócrifo de João”, encontrado nos manuscritos de Nag Hammadi. Yaldabaoth é muitas vezes descrito com aparência de animal, como um rosto de leão e um corpo de serpente.

Sua origem, segundo as histórias gnósticas, vem de um erro que aconteceu no Pleroma (o reino divino). Uma emanação divina chamada Sophia (Sabedoria), agindo sozinha e sem seu parceiro, gerou uma entidade imperfeita: Yaldabaoth.

Nomes e títulos

Além de Yaldabaoth, o Demiurgo gnóstico tem outros nomes que mostram sua natureza. Ele é chamado de Saklas, uma palavra em aramaico para “tolo”, e Samael, que em hebraico pode ser entendido como “deus cego” [19].

Esses nomes destacam sua ignorância sobre o Deus verdadeiro e o reino divino.

Com grande arrogância, Yaldabaoth declara: “Eu sou Deus e não há outro Deus além de mim” [19].

Para os gnósticos, essa frase, parecida com passagens do Antigo Testamento (Isaías 45:5), era a prova de sua cegueira. Isso levou muitos a identificá-lo com Yahweh, o Deus de Israel [5].

Uma divindade serpentina com cara de leão encontrada em uma joia gnóstica
Uma divindade serpentina com cara de leão encontrada em uma joia gnóstica

Variações no tema gnóstico

Apesar de a ideia de um Demiurgo inferior ser comum em quase todo o gnosticismo, a natureza de sua falha muda de acordo com as diferentes escolas de pensamento.

A visão setiana e ofita

Outros sistemas gnósticos, como o dos Setianos e Ofitas, tinham uma visão muito mais negativa do Demiurgo. Nesses sistemas, Yaldabaoth era um governante opressor e mau. Ele era o chefe dos Arcontes, os “governantes” do cosmos que impediam as almas de escapar do mundo material [20].

Nessa visão, a criação não foi apenas um erro, mas um ato planejado para aprisionar. Yaldabaoth e seus Arcontes eram os carcereiros da humanidade, e a lei que ele deu (a Lei de Moisés) era vista como uma ferramenta de controle e escravidão espiritual.

Visão Valentiniana

No sistema de Valentino, um dos professores gnósticos mais importantes, o Demiurgo não era totalmente mau, mas sim ignorante e limitado.

Ele pertencia a uma ordem inferior de existência e criou o mundo com boas intenções, mas sem conhecer o reino divino superior [20].

Sua criação era uma tentativa inconsciente de copiar o mundo espiritual. O resultado foi um universo com falhas, mas não completamente sem beleza ou ordem.

O Demiurgo de Valentino é uma figura trágica, o governante de um reino inferior que não entende sua própria origem [34].

Valentino, criador do valentinianismo
Valentino, criador do valentinianismo

A criação vista como uma prisão

Para o gnosticismo, o universo criado pelo Demiurgo era essencialmente mau ou, na melhor das hipóteses, uma cópia defeituosa de uma realidade superior. O corpo humano era um “túmulo” ou uma “prisão” para o espírito divino, a faísca de luz que caiu do reino divino e ficou presa na matéria [4].

A salvação, portanto, não vinha pela fé no criador, mas pela gnosis: um conhecimento secreto que despertava a alma para sua verdadeira origem. O objetivo do gnóstico era superar o mundo material, passar pelos Arcontes e voltar ao Pleroma, para se reunir com o Deus verdadeiro.

Respostas ao Gnosticismo: Filosofia e Teologia

A visão gnóstica do Demiurgo como um criador falho ou mau gerou fortes reações de filósofos pagãos e teólogos cristãos. Ambos os grupos consideravam que rebaixar o universo e seu criador era uma distorção perigosa da verdade. As respostas, no entanto, vieram de pontos de vista diferentes.

Reação neoplatônica: Plotino e a reintegração do Nous

O neoplatonismo, uma escola de filosofia que começou no século III d.C., buscou organizar e aprofundar as ideias de Platão. Seu principal pensador, Plotino, via o gnosticismo como uma heresia filosófica, uma visão pessimista que insultava a beleza do universo [52].

Em seu texto “Contra os Gnósticos”, Plotino ataca diretamente a ideia de um criador mau e de um mundo material ruim. Ele argumenta que essa visão é ingrata e não reconhece a ordem e a beleza que existem no mundo.

Para Plotino, o Demiurgo não era uma entidade caída. Ele o identificava com o Nous (a Mente ou o Intelecto), a segunda emanação divina que vem do “Um”, o princípio mais elevado de tudo.

O Nous observa a perfeição do Um e, a partir dessa observação, gera o universo como sua imagem [40].

Assim, Plotino recuperou a imagem do Demiurgo, colocando-o de volta na divindade como a mente de Deus que organiza o mundo. O universo, sendo a imagem do Intelecto divino, é bom e reflete a glória de sua origem.

Antiga pintura de Plotino
Antiga pintura de Plotino

Rejeição cristã: O Deus Único e Soberano

A teologia cristã, desde o início, rejeitou firmemente a doutrina gnóstica do Demiurgo. Os primeiros líderes da Igreja, como Irineu de Lião, viram o gnosticismo como uma ameaça direta à base da fé bíblica. A resposta cristã está firmada em vários pontos teológicos.

Creatio Ex Nihilo

A doutrina cristã defende a creatio ex nihilo, ou seja, a criação a partir do nada. Gênesis 1:1 afirma: “No princípio, Deus criou os céus e a terra” [7]. Deus não moldou uma matéria que já existia, mas criou todo o universo por meio de Sua Palavra poderosa.

Essa doutrina acaba com a possibilidade de um Demiurgo, pois afirma que há um único poder que deu origem a todas as coisas. Como o apóstolo João escreveu, “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (João 1:3) [8].

A bondade da Criação e da Matéria

Em oposição direta ao desprezo gnóstico pelo mundo material, a Bíblia afirma que a criação é boa. Após cada dia da criação, Deus declarou que o que Ele fez era “bom”.

No final, “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gênesis 1:31).

O corpo humano, a natureza e todo o universo físico são obras de um Deus bom, e não uma prisão. A esperança cristã não é escapar do corpo, mas a ressurreição do corpo, o que confirma o valor da criação material.

A origem do mal na Queda

Para a teologia cristã, o mal e o sofrimento no mundo não são resultado de um criador incompetente ou de uma matéria que é má por natureza.

O mal entrou no mundo por meio da Queda: a desobediência de Adão e Eva, que trouxe o pecado e a corrupção para uma criação que era originalmente perfeita [9].

A solução para o mal não é fugir da criação, mas a redenção da criação pela obra de Cristo. O livro de Romanos fala da criação que “geme” esperando ser liberta da escravidão da corrupção.

Adão e Eva por Mabuse, século XVI
Adão e Eva por Mabuse, século XVI

A soberania e Unidade de Deus

A Bíblia apresenta um Deus que é totalmente soberano, que sabe tudo e tem todo o poder. A ideia de um Demiurgo ignorante, que não conhece o Deus supremo, é incompatível com a revelação bíblica. Deus declara claramente: “Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus” (Isaías 45:5) [10].

Essa afirmação da unidade e do poder de Deus destrói a divisão gnóstica. Não existem dois deuses, um do espírito e outro da matéria. Há um único Deus, Criador e Senhor de tudo, do visível e do invisível.

Etimologia e significado do Demiurgo

A palavra Demiurgo tem uma origem interessante que ajuda a entender a evolução de seu significado. Ela vem do termo grego antigo dēmiourgós (δημιουργός), que é uma junção de duas palavras.

A primeira parte é dēmios (δήμιος), que significa “público” ou “do povo”. A segunda parte é érgon (ἔργον), que significa “trabalho” ou “obra”. Assim, o termo significa literalmente “aquele que trabalha para o povo” ou um “artesão público” [12].

Na Grécia antiga, a palavra era usada para descrever artesãos habilidosos, como carpinteiros, oleiros ou ferreiros. Eram trabalhadores que serviam a comunidade com suas habilidades.

Foi Platão, em seu diálogo “Timeu”, que deu ao termo um significado maior, ligado à criação do universo. Ele o usou para descrever o “Artífice Divino” que construiu e organizou o mundo. Nesse contexto, Demiurgo passou a significar o grande construtor do cosmos [2].

O gnosticismo, por sua vez, manteve a ideia de “artífice” ou “criador”, mas deu a ela um sentido negativo. O Demiurgo gnóstico é o criador de um mundo imperfeito, uma figura inferior e muitas vezes ignorante. A palavra manteve sua função de “criador”, mas sua dignidade foi completamente alterada [4].

Aprenda mais

[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia.

[Vídeo] GNOSTICISMO: A DOUTRINA QUE DESAFIOU A RELIGIÃO TRADICIONAL – Professor Responde 97. Prof. Jonathan Matthies.

[Vídeo] Demiurgo – O Falso Criador. Maria Pereda, PhD.

Perguntas comuns

Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo importante para as seitas gnósticas.

O que é um demiurgo?

É uma entidade que atua como um artesão divino. Na filosofia de Platão, ele é um construtor bom que organiza a matéria para formar o universo. No gnosticismo, é um criador inferior e falho, responsável por um mundo imperfeito.

Quem foi demiurgo na Bíblia?

O conceito de demiurgo não existe na Bíblia. A teologia bíblica apresenta Deus como o único Criador soberano que fez tudo do nada. Grupos gnósticos posteriores identificaram o Deus do Antigo Testamento como o demiurgo, mas essa é uma interpretação externa e não bíblica.

Quem é o demiurgo na maçonaria?

Na Maçonaria, o conceito análogo é o Grande Arquiteto do Universo. Ele simboliza um ser supremo e o princípio de ordem e desígnio no cosmos. Não é uma figura falha ou má, mas uma representação da razão divina por trás da criação.

Quem criou demiurgo?

Na filosofia de Platão, o demiurgo é um princípio eterno, não criado. Já no gnosticismo, ele é uma entidade inferior, criada acidentalmente por uma emanação divina (Sophia), que agiu de forma imperfeita, resultando em um criador falho e ignorante do verdadeiro Deus.

Demiurgo é do mal?

Depende do sistema. Para Platão, ele é perfeitamente bom. No gnosticismo, ele é visto como ignorante ou malévolo, um ser falho que criou um mundo aprisionador. Sua natureza pode variar de incompetente a ativamente opressora, dependendo da vertente gnóstica.

Qual é o nome do falso Deus?

No gnosticismo, o “falso deus” é o próprio Demiurgo, que ignorantemente se declara o único Deus. Seus nomes mais comuns são Yaldabaoth, Saklas (que significa “tolo”) e Samael (“deus cego”). Ele é considerado uma imitação imperfeita do verdadeiro Deus.

Quem é o Demiurgo no gnosticismo?

No gnosticismo, o Demiurgo é o criador do universo material, uma divindade inferior e ignorante. Ele é visto como uma emanação falha do reino divino que, por arrogância, acredita ser o único Deus. É frequentemente identificado com o Deus do Antigo Testamento.

Qual a religião do Demiurgo?

O Demiurgo não pertence a uma religião moderna organizada. É um conceito da filosofia platônica e, principalmente, das antigas religiões gnósticas. Hoje, é estudado em teologia e esoterismo, mas não é adorado em uma religião formal.

Quem é o Deus dos gnósticos?

Os gnósticos acreditavam em um Deus supremo, bom, transcendente e totalmente espiritual, que é incognoscível. Este Deus verdadeiro é diferente do Demiurgo, o deus menor e ignorante que criou o mundo material. A salvação gnóstica busca a união com este Deus supremo.

Quem acredita no Demiurgo?

Historicamente, filósofos platônicos, neoplatônicos e várias seitas gnósticas. Hoje, o conceito é estudado por teólogos e filósofos e pode ser encontrado em algumas correntes do esoterismo e ocultismo, mas não é uma crença de religiões majoritárias.

Fontes

[1] Platão. Timeu, 28a-29b.

[2] Cornford, F. M. Plato’s Cosmology: The Timaeus of Plato. Kegan Paul, 1937.

[3] Jonas, Hans. The Gnostic Religion: The Message of the Alien God and the Beginnings of Christianity. Beacon Press, 2001.

Demais fontes

[4] Pagels, Elaine. The Gnostic Gospels. Vintage Books, 1979.

[5] Irineu de Lião. Contra as Heresias, Livro I, Capítulo 24.

[6] Grudem, Wayne. Teologia Sistemática. Vida Nova, 1999, p. 263-268.

[7] Bíblia Sagrada, Gênesis 1:1.

[8] Bíblia Sagrada, João 1:3; Colossenses 1:16-17.

[9] Sproul, R. C. O Conhecimento de Deus. Cultura Cristã, 2004, p. 55-58.

[10] Bíblia Sagrada, Isaías 45:5.

[11] Erickson, Millard J. Teologia Cristã. Vida Nova, 2015, p. 301-305.

[12] Liddell, H. G., e Scott, R. A Greek-English Lexicon. Clarendon Press, 1940.

[19] “Apócrifo de João”, tradução de Frederik Wisse na Biblioteca de Nag Hammadi.

[20] Herbermann, Charles, ed. “Demiurge”. Enciclopédia Católica. Robert Appleton Company, 1913.

[34] Irineu, Adversus Haereses, i. 6.

[40] Karamanolis, George. Plato and Aristotle in Agreement?. Oxford University Press, 2006, p. 240.

[52] Armstrong, A.H., trad. Plotinus: Enneads II. Harvard University Press, 1966.

O que achou deste artigo?

Clique nas estrelas

Média 4.8 / 5. Quantidade de votos: 13

Nenhum voto até agora! Seja o primeiro a avaliar este post.

Maalalel da Teológico
Últimos posts por Maalalel da Teológico (exibir todos)