Os ofitas foram uma proeminente seita gnóstica dos primeiros séculos do cristianismo, distinguindo-se por uma complexa cosmologia e uma interpretação singular da serpente do Éden.
Seu nome, derivado do grego ophis (serpente), reflete a centralidade deste símbolo em suas doutrinas. Para eles, a serpente não era um agente do mal, mas um revelador do conhecimento divino.
Este artigo explorará as crenças dos ofitas, sua visão de mundo e sua marcante divergência da teologia cristã ortodoxa.
História dos ofitas
Os ofitas emergiram como um dos muitos grupos gnósticos que floresceram nos séculos II e III d.C., principalmente em regiões como o Egito e a Síria. O gnosticismo era um movimento religioso e filosófico heterogêneo, caracterizado pela crença de que a salvação se alcança através de um conhecimento secreto (gnosis).
Gnosticismo primitivo
A visão de mundo gnóstica era fundamentalmente dualista, postulando um conflito entre um mundo espiritual bom e um mundo material mau.
Para os ofitas, assim como para muitos gnósticos, o universo material não foi criado pelo Deus supremo e verdadeiro. Em vez disso, foi obra de uma divindade inferior e ignorante, frequentemente chamada de Demiurgo.
Essa cosmovisão levou a uma reinterpretação radical de muitas narrativas do Antigo Testamento.
Figuras e eventos eram vistos sob uma nova luz, onde o Deus criador de Gênesis era frequentemente retratado como um antagonista, e aqueles que o desafiavam eram vistos como heróis.
É dentro deste quadro de inversão que a teologia ofita deve ser compreendida.

Os heresiólogos
As informações sobre os ofitas provêm quase que exclusivamente dos escritos de seus oponentes, os primeiros Padres da Igreja, conhecidos como heresiologistas. Figuras como Ireneu de Lyon, em sua obra Adversus Haereses (Contra as Heresias), e Hipólito de Roma, em Refutação de Todas as Heresias, forneceram descrições detalhadas de suas crenças [1].
Esses autores escreveram com o propósito de refutar as doutrinas gnósticas, o que significa que seus relatos são críticos e, por vezes, hostis. No entanto, ao citar e descrever as crenças que combatiam, eles inadvertidamente preservaram um conhecimento valioso sobre os Ofitas que, de outra forma, teria se perdido.
A divergência fundamental dos Ofitas com o cristianismo ortodoxo residia em sua interpretação da criação, da figura de Deus, do papel da serpente no Éden e da pessoa de Jesus Cristo.
A Serpente e os ofitas
A característica mais distintiva e definidora dos Ofitas era a veneração da serpente, a ponto de derivarem seu nome dela. Essa veneração se baseava em uma reinterpretação radical da narrativa de Gênesis sobre a queda do homem.
A reinterpretação radical de Gênesis
Na teologia cristã ortodoxa, a Serpente no Jardim do Éden é um símbolo da tentação e da astúcia de Satanás
Ela engana Adão e Eva, levando-os ao pecado e à sua subsequente expulsão do Paraíso (Gênesis 3:1-7; Apocalipse 12:9). Os ofitas, contudo, liam essa história de maneira diametralmente oposta.
Para eles, a serpente era uma figura heroica, um ser divino enviado pelo Deus supremo e verdadeiro para libertar Adão e Eva da tirania do Demiurgo. A serpente não era a fonte do mal, mas a portadora da iluminação espiritual.

A Serpente como portadora da gnose
Segundo a visão ofita, o Demiurgo (identificado com o Deus do Antigo Testamento) proibiu Adão e Eva de comerem do fruto da árvore do conhecimento para mantê-los em um estado de servidão e ignorância. Ele temia que, se a humanidade adquirisse conhecimento, eles se tornariam como ele [2].
A serpente, portanto, ao instigá-los a desobedecer, estava na verdade os iluminando. Ela lhes concedeu a gnosis (conhecimento), o que os tornou cientes de sua verdadeira origem divina e de sua condição de prisioneiros no mundo material.
Para os ofitas, este ato não foi um pecado, mas um despertar espiritual indispensável e o primeiro passo para a salvação [3].
Essa perspectiva está em direto contraste com o ensino bíblico, que enfatiza a santidade e a bondade da lei de Deus e a malignidade da desobediência.
A Bíblia apresenta Deus como o Criador soberano e benevolente (Gênesis 1:31), e a serpente como o instrumento de um inimigo que busca destruir a humanidade (João 8:44).

Rituais e veneração da Serpente
A veneração da serpente não era apenas teórica. Epifânio de Salamina descreve um ritual chocante praticado por alguns grupos ofitas, que supostamente utilizavam uma serpente viva em sua cerimônia eucarística. A serpente era retirada de um cesto e autorizada a rastejar sobre os pães, que eram então considerados “santificados” e distribuídos aos fiéis [4].
Este ritual, se descrito com precisão, demonstra a centralidade da serpente em sua prática religiosa, elevando-a de um mero símbolo a um agente sacramental.
Cosmologia ofita
A teologia dos Ofitas era parte de uma cosmologia gnóstica elaborada, que se afastava significativamente das doutrinas cristãs primitivas.
O Deus Verdadeiro e o Demiurgo Ignorante
No topo de sua cosmologia estava um Deus supremo, transcendental e inefável, chamado Bythos (Profundidade) ou Primeiro Homem. Este Deus verdadeiro não teve qualquer papel na criação do mundo material, que era visto como uma obra falha.
O criador do universo material era o Demiurgo, uma divindade inferior, ignorante e frequentemente malévola. Os ofitas o chamavam de Yaldabaoth, um nome que possivelmente significa “filho do caos”.
Yaldabaoth, em sua arrogância, acreditava ser o único Deus e exclamou: “Eu sou Pai e Deus, e acima de mim não há outro” [1].
Imediatamente após sua declaração, uma voz vinda de cima, de sua mãe Sophia, o repreendeu: “Não minta, Yaldabaoth, pois acima de você está o Pai de Todos”.
Este evento expôs sua ignorância e estabeleceu o conflito central da cosmologia gnóstica.

A queda de Sophia (Sabedoria)
Dentro da cosmologia ofita, Sophia (Sabedoria) era uma figura central. Ela era concebida como uma emanação divina, um Aeon, que havia caído do Pleroma (a plenitude divina), o reino do Deus supremo [5].
Em sua queda e imperfeição, Sophia gerou o Demiurgo. Ela é vista como a alma do mundo, que anseia por retornar ao Pleroma e que, de várias maneiras, auxilia na libertação das almas humanas, que são fragmentos do divino aprisionados na matéria por seu filho, Yaldabaoth.
A criação do Homem e a recuperação da Luz
A criação da humanidade foi um ato dos arcontes (governantes) sob a liderança de Yaldabaoth. No entanto, Sophia interveio secretamente no processo. O homem formado por eles era inicialmente uma criatura fraca, rastejando como um verme.
Para animar sua criação, Yaldabaoth soprou nele o “sopro da vida”. Ao fazer isso, ele inadvertidamente transferiu para Adão a centelha de luz divina que ele havia herdado de sua mãe, Sophia. O plano de Sophia era usar a humanidade como um recipiente para recuperar a luz divina que seu filho havia aprisionado [1].

A hebdômada e os diagramas ofitas
Yaldabaoth e seus seis filhos formaram a Hebdômada, os sete arcontes que governavam as sete esferas celestiais, impedindo as almas de ascenderem ao Pleroma. Os nomes desses arcontes eram frequentemente derivados de nomes divinos do Antigo Testamento, como Iao, Sabaoth e Adonaios.
Orígenes descreve que os ofitas usavam complexos diagramas cosmológicos para mapear esses céus e os demônios que os governavam.
A alma, após a morte, precisava passar por cada uma dessas esferas, recitando fórmulas secretas e apresentando símbolos para propiciar os arcontes e obter passagem, em uma jornada ascendente de volta à sua origem divina [6].
Cristologia docética dos ofitas
A visão ofita de Jesus Cristo era radicalmente diferente da ortodoxia cristã, tendendo fortemente ao docetismo.
A Missão de Cristo e a separação de Jesus
Para os ofitas, a redenção não vinha pela fé ou por obras, mas pela obtenção da gnosis.
Cristo era visto como um Aeon, uma emanação divina enviada pelo Deus supremo para trazer esse conhecimento secreto aos eleitos e libertá-los do domínio do Demiurgo [2].
Eles faziam uma distinção nítida entre o Aeon divino, “Cristo”, e o homem humano, “Jesus”.
Cristo desceu dos céus e se uniu temporariamente a Jesus no momento de seu batismo. Foi essa união que capacitou Jesus a realizar milagres e a ensinar a gnosis.

A crucificação e a redenção gnóstica
A cristologia ofita era docética, ou seja, acreditava que Cristo não possuía um corpo físico real, mas apenas uma aparência de corpo. Consequentemente, seu sofrimento na cruz era ilusório. Antes da crucificação, o Aeon divino “Cristo” e Sophia abandonaram o corpo humano de Jesus, que morreu sozinho na cruz [1].
A salvação, portanto, não foi alcançada através de um sacrifício expiatório na cruz, mas através dos ensinamentos secretos que o Cristo divino revelou enquanto estava unido a Jesus. A ressurreição também não foi de um corpo físico, mas de uma entidade espiritual.
Essa visão contrasta diretamente com a doutrina cristã da encarnação, que afirma que Jesus Cristo é plenamente Deus e plenamente homem, e que sua morte física e ressurreição corporal são o fundamento da salvação (João 1:14; 1 Coríntios 15:3-4).
Críticas aos ofitas
A Igreja cristã primitiva refutou veementemente as doutrinas dos ofitas. A perspectiva cristã, baseada na revelação bíblica, apresenta um Deus único, soberano e bom, que é tanto o Criador quanto o Redentor.
A unidade e a bondade de Deus
A Bíblia ensina que há um só Deus (Deuteronômio 6:4) e que Ele é o criador de todas as coisas.
Ao contrário da visão gnóstica de um mundo material mau criado por um Demiurgo, Gênesis afirma que tudo o que Deus fez foi “muito bom” (Gênesis 1:31). A ideia de que o Deus do Antigo Testamento é um ser inferior ou maligno é completamente rejeitada.

A Serpente, o Pecado e a Salvação
A interpretação ofita da serpente inverte a narrativa bíblica da Queda. A Escritura identifica a serpente como um instrumento de Satanás, o “pai da mentira” (João 8:44) e o grande enganador (Apocalipse 12:9). O pecado é uma desobediência a um Deus santo, resultando em separação d’Ele, e não um despertar.
A salvação na fé cristã não é alcançada por um conhecimento secreto reservado a uma elite, mas pela graça de Deus, oferecida a todos e recebida pela fé em Jesus Cristo (Efésios 2:8-9).
Etimologia e grupos relacionados
O nome e as associações dos Ofitas revelam sua posição dentro do espectro gnóstico mais amplo.
O Significado do Nome “Ofitas”
O nome “Ofitas” tem sua origem no grego antigo. Deriva da palavra ophis (ὄφις), que significa “serpente” [7]. O sufixo “-ita” indica “seguidor de”. Assim, o termo pode ser traduzido literalmente como “seguidores da serpente”, uma designação que reflete diretamente sua veneração por este símbolo.
Relação com naassenos e cainitas
Os ofitas não eram um grupo isolado. Eles compartilhavam muitas ideias com outras seitas, formando uma corrente de pensamento “ofita” mais ampla.
Os naassenos, por exemplo, derivavam seu nome da palavra hebraica para serpente, naḥash.
Outros grupos, como os cainitas, levavam a inversão dos valores do Antigo Testamento a um extremo ainda maior.
Eles veneravam figuras como Caim, Esaú, Corá e até Judas Iscariotes como heróis, por terem desafiado o Demiurgo [8]. Embora existissem pontos em comum, a centralidade da serpente distinguia os ofitas de outras correntes gnósticas.

Aprenda mais
[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia
[Vídeo] GNOSTICISMO: A DOUTRINA QUE DESAFIOU A RELIGIÃO TRADICIONAL – Professor Responde 97. Prof. Jonathan Matthies.
Perguntas comuns
Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca desta seita cristã gnóstica.
Qual é o significado da serpente no gnosticismo?
No gnosticismo, especialmente entre os Ofitas, a serpente é um símbolo de sabedoria e libertação. Ela é vista como uma mensageira do bem que ofereceu o verdadeiro conhecimento (gnose) a Adão e Eva, libertando-os da ignorância imposta pelo deus criador inferior (o Demiurgo).
O que são os Diagramas de Ofite?
Eram mapas cosmológicos secretos usados pelos Ofitas, descritos pelo teólogo Orígenes. Esses diagramas detalhavam as sete esferas celestiais e seus governantes (arcontes). A alma do gnóstico usava esse mapa e fórmulas secretas para sua jornada de ascensão de volta ao reino divino após a morte.
Quem foram os ofitas?
Os Ofitas foram um conjunto de seitas cristãs gnósticas dos séculos II e III, cujo nome vem do grego ophis (“serpente”). Sua principal característica era a veneração da serpente do Éden, que eles consideravam uma figura heroica que trouxe conhecimento à humanidade, desafiando o deus criador.
Fontes
[1] Ireneu de Lyon. Adversus Haereses (Contra as Heresias).
[2] Hipólito de Roma. Refutação de Todas as Heresias.
[3] Pagels, E. (1979). The Gnostic Gospels. Vintage Books.
Demais fontes
[4] Epifânio de Salamina. Panarion, 37.
[5] Rudolph, K. (1987). Gnosis: The Nature and History of Gnosticism. T&T Clark.
[6] Orígenes. Contra Celsum, Livro VI.
[7] Liddell, H. G., & Scott, R. (1940). A Greek-English Lexicon. Oxford University Press.
[8] Schaff, P. (1997). History of the Christian Church, Vol. II: Ante-Nicene Christianity A.D. 100-325. Christian Classics Ethereal Library.
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