Galicanismo

Galicanismo é um conjunto de doutrinas e práticas que defendiam a autonomia da Igreja Católica na França frente ao Papa.

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O galicanismo se refere a um conjunto de doutrinas, práticas e políticas que defendiam a autonomia da Igreja Católica na França, conhecida como Igreja Galicana, em relação à autoridade do Papa.

Este movimento buscava equilibrar a influência papal com os interesses do reino francês, promovendo as liberdades tradicionais da Igreja local e reforçando o poder do monarca sobre questões eclesiásticas.

O galicanismo moldou as relações entre Igreja e Estado na França por séculos, influenciando a política religiosa até o século XIX.

Neste artigo apresentamos um pouco da história desta doutrina, assim como suas implicações teológicas.


Origem e história do galicanismo

O galicanismo tem origem nas disputas de poder entre o papado e as monarquias europeias, especialmente a francesa, no contexto da Idade Média tardia.

Durante o século XIV, o Cisma do Ocidente (1378-1417) dividiu a cristandade ocidental, com papas rivais em Roma e Avignon, o que enfraqueceu a autoridade papal e fortaleceu movimentos que questionavam a supremacia do Papa.

Nesse período, o conciliarismo, uma corrente que defendia a superioridade dos concílios gerais sobre o Papa, ganhou força, especialmente no Concílio de Constança (1414-1418).

Jan Hus no Concílio de Constança. Pintura de Václav Brožík.
Jan Hus no Concílio de Constança. Pintura de Václav Brožík.

Este concílio, que resolveu o cisma ao eleger o Papa Martinho V, promulgou decretos como o Haec Sancta e o Frequens, que afirmavam a autoridade dos concílios sobre o papado em questões de fé e governança eclesiástica. [1]

Pragmática sanção de Bourges

A Pragmática Sanção de Bourges de 1438, promulgada pelo rei Carlos VII da França, foi um marco crucial. Este documento foi inspirado pelas ideias conciliaristas e buscava limitar a influência do Papa na França.

Essa pragmática estabelecia que:

  • Nomeações de bispos e outros cargos eclesiásticos seriam feitas pelo rei ou pelos capítulos catedrais, com o Papa tendo apenas um papel de confirmação.
  • A arrecadação de impostos eclesiásticos (como os anates e as dízimas) pela Santa Sé foi restringida.
  • Recursos judiciais para Roma (apelações à Cúria Romana) foram limitados, reforçando a jurisdição dos tribunais franceses.

A Pragmática Sanção foi uma resposta às tensões entre Carlos VII e o papado, especialmente após o Concílio de Basileia (1431-1449), que continuou a defender o Conciliarismo, mas entrou em conflito com o Papa Eugênio IV. [2]

Embora a Pragmática tenha sido parcialmente revogada pelo Concordata de Bolonha (1516), que restabeleceu algumas prerrogativas papais, ela lançou as bases para o galicanismo ao afirmar a autonomia relativa da Igreja francesa. [2]

A declaração do clero da França

O ápice do da doutrina ocorreu em 1682, com a promulgação da Declaração do Clero da França, redigida em grande parte por Jacques-Bénigne Bossuet, um influente teólogo e bispo.

Esta declaração, composta por quatro artigos, codificou os princípios centrais do galicanismo:

  • Separação entre poder espiritual e temporal;
  • Supremacia dos concílios gerais;
  • Respeito às tradições locais;
  • Limites à infalibilidade papal.

Separação entre poder espiritual e temporal

O Papa possui autoridade apenas em questões espirituais, sem jurisdição sobre os soberanos em assuntos temporais. Isso reforçava a independência dos reis franceses em relação a Roma. [3]

Retrato de Jacques-Bénigne Bossuet. Um dos principais teólogos católicos defensor do galicanismo
Retrato de Jacques-Bénigne Bossuet. Um dos principais teólogos católicos defensor do galicanismo

Supremacia dos concílios gerais

A autoridade dos concílios gerais, como estabelecido no Concílio de Constança, era superior à do Papa, refletindo a tradição conciliarista. [3]

Respeito às tradições locais

A autoridade apostólica do Papa deveria ser exercida em conformidade com os cânones, regras e costumes estabelecidos na França, protegendo as liberdades galicanas. [3]

Limites à infalibilidade papal

Embora o Papa tivesse um papel principal em questões de fé, suas decisões não eram irreformáveis sem o consentimento da Igreja universal. [3]

Relação com o poder real francês

A Declaração de 1682, por exemplo, foi uma resposta a disputas entre Luís XIV e o Papa Inocêncio XI, particularmente sobre a questão da regale (o direito do rei de administrar os rendimentos de dioceses vagas). [4]

Roma condenou veementemente os Quatro Artigos, e Inocêncio XI chegou a suspender a aprovação de bispos franceses nomeados pelo rei, levando a um impasse diplomático. [4]

Retrato de Luís XIV, antigo rei da França
Retrato de Luís XIV, antigo rei da França

Resistência papal e declínio do galicanismo

O galicanismo enfrentou forte oposição do papado. Inocêncio XI e seus sucessores viam os princípios galicanos como uma ameaça à autoridade universal da Igreja.

Apesar das condenações, a influência desta doutrina persistiu na França, sustentada pelo apoio do clero e da monarquia. No entanto, eventos posteriores começaram a minar suas bases.

Concordata de 1801

Firmada entre Napoleão Bonaparte e o Papa Pio VII, esta concordata redefiniu as relações entre Igreja e Estado na França, restaurando parcialmente a influência papal e reduzindo a autonomia galicana. [5]

Primeiro Concílio Vaticano

A proclamação da infalibilidade papal em questões de fé e moral, sob o Papa Pio IX, contradizia diretamente os princípios galicanos, especialmente o quarto artigo, que negava a irreformabilidade das decisões papais sem o consentimento da Igreja. [6]

Embora o Concílio Vaticano I tenha enfraquecido teologicamente o galicanismo, certos sentimentos de autonomia eclesiástica persistiram em alguns círculos franceses, especialmente entre o clero e intelectuais que valorizavam as tradições galicanas.

Primeiro Concílio Ecumênico do Vaticano
Primeiro Concílio Ecumênico do Vaticano

Impacto e legado do galicanismo

O galicanismo teve um impacto duradouro na história religiosa e política da França. Ele representou uma tentativa de conciliar a fé católica com a soberania nacional, promovendo uma Igreja que, embora fiel a Roma em questões doutrinárias, mantinha autonomia em questões administrativas e políticas. [7]

Esse movimento influenciou outras nações europeias, onde ideias semelhantes de autonomia eclesiástica surgiram, como o jansenismo e o febronianismo. [7]

Durante a Revolução Francesa, os princípios galicanos foram parcialmente absorvidos pelas ideias de secularismo, laicismo e controle estatal sobre a Igreja, embora o movimento em si tenha perdido força com a reestruturação das relações Igreja-Estado no século XIX.


Etimologia e significado de galicanismo

O termo galicanismo deriva do termo latino Gallicanus, que significa “relativo à Gália” ou “gaulês”. A Gália (Gallia) era o nome dado pelos romanos à região que corresponde, em grande parte, à França moderna.

O termo foi adaptado ao contexto eclesiástico para designar a Igreja Católica na França, conhecida como Igreja Galicana. O sufixo -ismo, de origem grega (-ismos), indica uma doutrina, sistema ou movimento.

Dessa forma o termo “galicanismo” se refere a um conjunto de ideias, práticas e doutrinas associadas à autonomia da Igreja Galicana em relação à autoridade papal.


Aprenda mais

[Vídeo] Teológico | Bíblia & Teologia

[Vídeo] TradTalk Podcast 111 – O Galicanismo (com Prof. Carlos Bezerra)


Perguntas comuns

Nesta seção apresentamos as principais perguntas, com suas respectivas respostas, acerca deste termo.

O que foi o movimento do galicanismo?

O galicanismo foi um movimento que defendia a autonomia da Igreja francesa frente à autoridade papal, foi muito relevantes durante os séculos XVII e XVIII.

O que foi a Igreja Galicana?

A Igreja Galicana foi a Igreja Católica na França que, sob o galicanismo, buscava maior autonomia em relação ao Papa, defendendo o controle do rei sobre nomeações e administração eclesiástica, especialmente nos séculos XVII e XVIII, com base nas “liberdades galicanas” estabelecidas em 1682.


Fontes

[1] Oakley, F. (2003). The Conciliarist Tradition: Constitutionalism in the Catholic Church, 1300-1870. Oxford: Oxford University Press.

[2] Coste, J. (2005). Le Grand Schisme d’Occident et la Pragmatique Sanction de Bourges. Paris: Presses Universitaires de France.

[3] Bossuet, J.-B. (1682). Déclaration du clergé de France. Paris.

[4] O’Connell, M. R. (1968). The Counter-Reformation, 1559-1610. New York: Harper & Row.

[5] Aston, N. (2000). Religion and Revolution in France, 1780-1804. Washington, D.C.: Catholic University of America Press.

[6] O’Malley, J. W. (2008). What Happened at Vatican II. Cambridge, MA: Harvard University Press.

[7] Van Kley, D. K. (1996). The Religious Origins of the French Revolution. New Haven: Yale University Press.

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Diego Pereira do Nascimento
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